60 anos da Bossa Nova

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Final dos anos 1950, zona sul do Rio de Janeiro. Um ritmo musical se esparrama pelos tapetes dos apartamentos e auditórios de universidades da cidade, para então, no início da década de 1960, ganhar o Brasil e o mundo. Símbolo de modernidade e trilha sonora da boemia daquela época, a bossa nova completa 60 anos em 2018.

Trecho extraído do programa Caminhos da Reportagem: Caminhos de Tom

Vista aérea de Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro - Foto: acervo da Fundação Biblioteca Nacional | Divulgação do livro 'Copacabana: A trajetória do samba-canção'

A primeira aparição do novo ritmo musical aconteceu no disco Canção do Amor Demais, onde a cantora Elizeth Cardoso interpreta composições da dupla Tom Jobim e Vinicius de Moraes. A bossa nova desponta especificamente em duas faixas, com acompanhamento ao violão feito pelo baiano João Gilberto, que traz pela primeira vez a batida do violão que se tornaria característica do estilo. “É clássico e definitivo momento de parto [da bossa nova]”, considera o crítico e historiador Ricardo Cravo Albin.

Canção do Amor Demais

Gravado em abril e lançado em maio de 1958, o disco Canção do Amor Demais teve uma prensagem de 2 mil cópias. A produção foi feita pelo selo literário Festa, mantido pelo jornalista Irineu Garcia.

Capa do disco Canção do Amor Demais gravado em 1958 por Elizeth Cardoso

O catálogo do selo tradicionalmente reunia discos em que poetas e cronistas liam suas obras. Com Vinicius de Moraes, no entanto, foi diferente: em vez da leitura de poemas, Irineu sugeriu produzir um álbum com as composições ainda pouco conhecidas que ele havia feito, em parceria com Jobim, para a peça Orfeu da Conceição.

Tom Jobim já tinha feito arranjos para o primeiro disco de Elizeth Cardoso Canções à meia luz, gravado em 1955 e Vinicius se encantou com a voz da Divina, apelido cunhado por ele ao ouvir Canção de Amor na voz da cantora, nas proximidades do Porto de Santos, quando voltava ao Brasil depois de anos trabalhando como diplomata em Paris. Ligada ao samba-canção, gênero musical que predominava até então no Brasil, Elizeth aprendeu as canções da dupla no apartamento da Rua Nascimento Silva 107, em Ipanema, onde Tom Jobim morou entre 1953 e 1962.

Apesar de reconhecida como a maior cantora brasileira de sua época, o que pesou em sua escolha por Tom e Vinicius, Elizeth jamais foi uma recordista em vendagem de discos. Contudo suas gravações alcançavam uma permanência só comparável a poucas cantoras brasileiras, como é o caso desse LP lançado pela gravadora Festa, especializada em discos de poesia e cuidadosamente dirigida por Irineu Garcia

Zuza Homem de Mello em Copacabana: a trajetória do samba-canção (Editora 34, 2017)

A cantora Elizeth Cardoso - Foto: Fundo Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo

A participação de João Gilberto estava prevista em cinco faixas, mas se concretizou em apenas duas: Outra Vez, composição de Tom que já havia sido gravada em 1954, e Chega de Saudade, parceria dele com Vinicius feita em 1956, que permanecia inédita até então.

Outra vez, mais do que Chega de Saudade, está, em Canção do amor demais, bem próxima do estado de espírito bossa-nova [...]. Quanto a Chega de Saudade, seu registro é um laboratório do que seria a famosa gravação de João, dali a seis meses

Walter Garcia em Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto (Paz e Terra, 1999)

A música Outra Vez é anterior à bossa nova. O João colocou o ritmo de bossa nova e seguiu com a orquestra. Eu tinha gravado com o Dick Farney, era um samba-canção [...] gravada pelo João, a música ficou com uns espaços, enquanto o ritmo vai correndo solto, e as frases melódicas aparecem de vez em quando

Tom Jobim em Tons sobre Tom, de Márcia Cezimbra, Tessy Callado e Tárik de Souza (Editora Revan, 1995)

Chega de Saudade

Tom Jobim fez a parte musical de Chega de Saudade quando estava no sítio de sua família em Petrópolis. Assim que voltou para o Rio de Janeiro mostrou a canção para Vinicius, que estava de malas prontas para reassumir seu posto de diplomata em Paris, mas adiou a viagem em alguns dias para terminar a letra da canção.

O Vinicius fez a letra de Chega de Saudade do meu lado. Ele não gostava de trabalhar sozinho. Preferia trabalhar ao lado do piano

Tom Jobim em Tons sobre Tom, de Márcia Cezimbra, Tessy Callado e Tárik de Souza (Editora Revan, 1995)

Tom Jobim toca piano ao lado do poeta Vinicius de Moraes - Foto: Divulgação / A Música Segundo Tom Jobim

O encontro de Tom e Vinícius

Vinicius já conhecia Tom Jobim de vista, das noites no Clube da Chave em 1952, mas foi apresentado pessoalmente ao pianista pelo crítico e historiador Lúcio Rangel em 1956. O encontro aconteceu no Bar Villarino, no Rio de Janeiro.

Conheci o Vinicius mais ou menos em 1953, mais de obas e olás. Em novembro de 1956, começamos a parceria. A verdadeira apresentação ao Vinicius foi feita pelo Lúcio Rangel. Foi aí que começamos o trabalho no Orfeu da Conceição

Tom Jobim em Tons sobre Tom, de Márcia Cezimbra, Tessy Callado e Tárik de Souza (Editora Revan, 1995)

Estréia da peça Orfeu da Conceição - Foto: Fundo Última Hora / Apesp

Jobim estava com 29 anos e trabalhava como pianista no Bar Azul, em Copacabana. Vinicius apresentou ao músico o projeto de sua peça Orfeu da Conceição e o convidou para musicá-la. Em entrevista para o programa Ensaio da TV Cultura, resgatado para o especial sobre o poeta feito pelo Caminhos da Reportagem da TV Brasil, Vinicius lembra desse encontro:

A parceria com Antonio Carlos Jobim, iniciada sob a gerência espiritual de Orfeu, serve de marca definitiva para uma virada na carreira do poeta. O inspirado Tom desloca a atenção de Vinícius do silêncio e da atmosfera reservada própria à poesia e a dirige para o ambiente mais amplo e arejado da música popular

José Castello em Vinícius de Moraes: O Poeta da Paixão (Cia das Letras, 1997)

Veja também o especial Vinicius de Moraes
Depois que encontrei o Vinícius e fiz o Orfeu da Conceição, percebi que poderia ser um bom músico. Antes, na adolescência, eu subia o morro do Cantagalo e ia lá pra cima olhar o mar. Pensava na música, pensava em ser músico”.

Tom Jobim em Tons sobre Tom, de Márcia Cezimbra, Tessy Callado e Tárik de Souza (Editora Revan, 1995)

Veja também o especial Tom Jobim

João Gilberto reencontra Tom

No início de 1955 João Gilberto havia chegado ao seu fundo do poço no Rio. Estava sem dinheiro, sem trabalho e quase sem amigos. O orgulho flechado por todos os lados fizera sua autoestima despencar a zero

Ruy Castro em Chega de Saudade: a história e as histórias da Bossa Nova (Companhia das Letras, 1990)

Após passar dois anos em diferentes cidades (Porto Alegre, Diamantina, Juazeiro e Salvador), João Gilberto retorna ao Rio em 1957, então com 26 anos, e traz na bagagem os elementos fundamentais para a consolidação da bossa nova: a batida do violão e a forma de cantar.

João Gilberto na época da gravação de seu primeiro disco - Foto: Divulgação / Francisco Pereira
As saudades da minha família eram grandes. Procurei minha irmã, que se casara e residia numa cidade mineira. E daí fui rever os meus pais, de quem eu estava afastado havia seis anos[...] Meus planos eram recuperar-me dos insucessos. Quando vim novamente para o Rio, estava apto para lutar em situação de igualdade com muita gente. O sofrimento havia-me dado a necessária experiência

João Gilberto em entrevista concedida para a Revista do Rádio em 23/01/1960.

Se Tom e Vinicius já haviam estabelecido a parceria de letra e música que serviu de base para o gênero musical, o elemento detonador desse processo foi o reencontro de Tom Jobim e João Gilberto, que já se conheciam anteriormente das madrugadas nas boates cariocas.

Estimulado por Chico Pereira, fotógrafo da gravadora Odeon, onde Jobim exercia a função de diretor artístico, João procurou o maestro no seu apartamento em Ipanema e apresentou a ele duas composições próprias: Bim-bom e Hô-ba-la-lá.

Tom se impressionou com a batida do violão do músico baiano e pensou nas composições em que estava trabalhando. Escolheu Chega de Saudade, parceria com Vinicius feita após a temporada de Orfeu da Conceição, que permanecia guardada.

O samba de João Gilberto

Tudo é samba. Mas isso, essa bossa, é outra coisa: é samba e não é samba
Esse espaço que aproveito, tinha no samba. Foi tirado do samba. A prova que tinha, é que tem. É um contratempo que é do samba

Essas falas foram destacadas de depoimentos dados por João Gilberto em outubro de 1990, selecionadas pela pesquisadora Edinha Diniz em João Gilberto (Cosac Naify, 2012), organizado por Walter Garcia.

Ao acompanhar Elizeth Cardoso, João Gilberto inova na forma de cadenciar o ritmo, acentuando os tempos fracos, de forma a realizar uma síntese da batida do samba ao violão.

A síntese realizada pelo violão de João Gilberto é uma redução da batucada do samba. Uma estilização produzida a partir de um dos instrumentos de percussão (o tamborim) em detrimento dos demais

Walter Garcia em Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto (Paz e Terra, 1999).

A maneira como ele trabalha o samba faz com que a música dele acabe sendo samba e não sendo ao mesmo tempo. Eu cheguei a essa conclusão analisando o ritmo, a batida do João Gilberto ao violão

Walter Garcia, em entrevista ao Portal EBC.

João parte do samba para retornar a ele: então, o que ele faz é samba; e não é: pois sua batida não permanece no samba, ela vai e volta impulsionada por aquilo que o baiano acrescenta, aquilo que se convencionou chamar de bossa e que, formalmente são os procedimentos jazzistas

Walter Garcia em Bim Bom, a contradição sem conflitos de João Gilberto

Meses depois de Canção do Amor Demais chegar às lojas, João Gilberto conclui a gravação de seu próprio disco 78 rotações, contendo de um lado a canção Chega de Saudade e de outro Bim Bom, composição própria.

Tom Jobim já havia apresentado para Aloysio de Oliveira, que assumiria como diretor-geral da Odeon, um acetato com João Gilberto cantando e tocando Chega de Saudade apenas em voz e violão. Oliveira não se impressionou com o que ouviu, mas foi convencido depois por André Midani e Dorival Caymmi, que se juntaram a Tom na argumentação.

Jobim simplificou o arranjo que havia feito para o disco de Elizeth para Chega de Saudade e também para Bim Bom, que seria gravada pela primeira vez.

O samba sempre teve muito acompanhamento, muita batucada - às vezes sofria de excesso de acompanhamento, inclusive. Você tocando tudo ao mesmo tempo [...] não deixa os espaços. Você acaba criando uma zoeira que mais parece um mar de ressaca. O que nós fizemos ali com o João foi tirar as coisas, criar espaço, dissecar, despojar, economizar

Tom Jobim em entrevista a Jorge Carvalho Pereira da Silva citado no artigo Eu mesmo mentindo devo argumentar, de José Miguel Wisnik.

Nesse trabalho autoral, onde definitivamente se consolidou o que seria chamado de bossa nova, aparece outra faceta de João Gilberto: a forma de cantar o samba. Para Walter Garcia, dizer que João Gilberto canta “baixinho”, ou que seu canto se aproxima do modo de falar, é contemplar apenas uma parte desse processo.

“Existe também uma percussividade na forma de cantar de João Gilberto e alguns pesquisadores apontam que seu canto se aproxima da sonoridade de um instrumento de cordas e da articulação de um saxofone”, acrescenta.

Ruy Castro levanta uma possível influência na forma de cantar de João Gilberto: a cantora Sylvia Telles, que já havia gravado a canção Foi a Noite, de Tom Jobim, em um disco gravado em 1956 - antes do retorno de João Gilberto ao Rio de Janeiro.

Lembre-se que os dois foram namorados em 1952, quando João ainda usava amídalas à Orlando Silva e a acompanhava todo dia ao violão. Não se pode ter certeza de como ela cantava naquele tempo, mas, desde os seus primeiros 78s a partir de Foi a Noite em 1956 Sylvinha já era a mesma cantora que em 1959 gravaria Amor de gente moça. Ela não havia mudado; João Gilberto, sim.

Ruy Castro em Chega de Saudade: a história e as histórias da Bossa Nova (Companhia das Letras, 1990)

Em uma rara entrevista, concedida a Tárik de Souza e publicada na revista Veja em 12/05/1970, João Gilberto comentou sobre sua forma de cantar:

“Uma das músicas que despertaram, que me mostraram que podia tentar uma coisa diferente foi Rosa Morena, do Caymmi. Sentia que aquele prolongamento de som que os cantores davam prejudicava o balanço natural da música. Encurtando o som das frases, a letra cabia certa dentro dos compassos e ficava flutuando. Eu podia mexer com toda a estrutura da música, sem precisar alterar nada. Outra coisa com que eu não concordava era as mudanças que os cantores faziam em algumas palavras, fazendo o acento do ritmo cair em cima delas para criar um balanço maior. Eu acho que as palavras deveriam ser pronunciadas da forma mais natural possível, como se estivesse conversando. Qualquer mudança acaba alterando o que o letrista quis dizer com seus versos. Outra vantagem dessa preocupação é que, às vezes, você pode adiantar um pouco a frase e fazer às vezes com que caibam duas ou mais num compasso fixo. Com isso, pode-se criar uma rima de ritmo. Uma frase musical rima com a outra sem que a música seja artificialmente alterada”

João Gilberto em entrevista a Tárik de Souza

Caymmi toca violão em uma boate carioca. Autor de sambas-canção na década de 1950, ele teve músicas regravadas por João Gilberto com a batida de violão da bossa nova - Foto: Fundo Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo

A forma inovadora de tocar e cantar o samba, unida às harmonias de Tom Jobim e à guinada do poeta e diplomata Vinicius de Moraes como letrista de música popular, encontrou ressonância imediata entre os músicos que buscavam na noite carioca novas abordagens para o samba. Muitos deles eram influenciados pelo jazz norte-americano.

Transição

“A música brasileira de onde eu vim é a música do perdedor, perdedor nato [...]. A coisa da bossa nova, a coisa do Vinicius, ele começa a dizer uma porção de coisas afirmativas, ele fala ‘eu sei que vou te amar’, ele fala um troço positivo”, afirmou Tom Jobim em uma entrevista recuperada pela Rádio Nacional. Ouça o trecho da entrevista:

A bossa nova surgiu no momento em que o samba-canção era o gênero musical que dominava o mercado fonográfico brasileiro. Ricardo Cravo Albin considera que Chega de Saudade, gravada por João Gilberto, foi a manifestação concreta do movimento e um grito ao samba-canção.

“O samba-canção não era senão um samba lento, muitas vezes com um cheiro de bolero, que foi o grande momento da venda de discos nos anos 1950. Era o samba-fossa, o samba dor de cotovelo”, aponta o crítico e historiador.

Chega de Saudade, como diria pitorescamente o maestro Rogério Duprat, fora ‘uma pernada na era boleral’. Aquele novo jeito de cantar e tocar de João Gilberto ensolarava tudo - muito mais do que ‘Copacabana’, com Dick Farney, tinha feito 12 anos antes

Ruy Castro em Chega de Saudade: a história e as histórias da Bossa Nova (Companhia das Letras, 1990)

Trio de jazz de Dick Farney tocando no Peacock Alley do hotel Waldorf Astoria, em Nova York, em 1957 - Crédito: Fundo Última Hora / Apesp

Para o crítico musical Zuza Homem de Mello, autor de Copacabana: a trajetória do samba-canção, a bossa nova foi uma evolução dessa forma de fazer samba, que representou um momento de transição no processo de modernização da música brasileira iniciado no final da década de 1940.

“O samba-canção vinha dando ares de modernidade à Música Popular Brasileira, devido a compositores que deram à música melodias e harmonias muito mais avançadas do que as que havia até então”, considera.

Aproveitando os avanços musicais, a bossa nova se consolidou com a nova forma de ritmar o samba, e a batida de violão de João Gilberto representou o ápice desse processo de modernização. “A bossa nova também é um samba, não nos esqueçamos disso, só que um samba criado ou recriado pela batida de João Gilberto”, pontua Cravo Albin.

O grande salto do samba-canção para bossa nova foi essa batida do João. Essa batida do João está incorporada. O universo todo conhece. Eu tinha uma série de sambas-canção de parceria com Newton Mendonça mas a chegada do João abriu novas perspectivas: o ritmo que o João trouxe. A parte instrumental - harmônica e melódica - essa já estava mais ou menos estabelecida

Tom Jobim em Tons sobre Tom, de Márcia Cezimbra, Tessy Callado e Tárik de Souza (Editora Revan, 1995)

No livro Verdade Tropical, Caetano Veloso exemplifica a transição do samba-canção para a bossa nova ao comparar duas gravações da música Caminhos Cruzados, composição de Tom Jobim: a versão de Maysa, gravada como samba-canção, e a de João Gilberto, como bossa nova. Ele conclui que a segunda revela “o samba-samba que estava escondido num samba-canção”.

A interpretação de João é mais introspectiva que a de Maysa, e também violentamente menos dramática; mas, se na gravação dela os elementos essenciais do ritmo original do samba foram lançados ao esquecimento quase total pela concepção do arranjo e, sobretudo, pelas inflexões do fraseado, na dele chega-se a ouvir - com o ouvido interior - o surdão de um bloco de rua batendo com descansada regularidade de ponta a ponta da canção. É uma aula de como o samba pode estar inteiro mesmo nas suas formas mais aparentemente descaracterizadas; um modo de, radicalizando o refinamento, reencontrar a mão do primeiro preto batendo no couro do primeiro atabaque no nascedouro do samba.

Caetano Veloso em Verdade Tropical (Companhia das Letras, 2017)

Onde está João Gilberto?

A bossa nova chega à terceira idade com seu principal ícone fora de atividade há dez anos: a última vez que João Gilberto pisou em um palco foi em 2008, por ocasião das comemorações dos 50 anos desse gênero musical. Em São Paulo, os shows aconteceram no auditório do Ibirapuera e o apresentador foi o crítico musical e amigo pessoal de João, Zuza Homem de Mello.

“Estive com ele pessoalmente, sempre com aquela amizade intensa de parte a parte, numa situação muito amorosa, muito respeitosa e da minha intensa admiração sobre aquele que é o mestre para a música popular”, recorda Melo.

A memória que guarda daquela apresentação é de uma platéia “totalmente fascinada, num silêncio sepulcral”.

Foi a última vez que ele esteve na presença do músico e lamenta sua ausência dos palcos no momento em que o movimento musical alavancado por ele chega aos 60 anos.

“É uma grande pena a gente não ter mais o João Gilberto podendo cantar e tocar em público. Certamente ele deve estar cantando e tocando no apartamento onde vive”, reflete.

Houve uma expectativa de que João voltasse aos palcos em novembro de 2011, em uma turnê nacional com o show João Gilberto 80 anos - Uma vida Bossa Nova. Mas a primeira apresentação que seria realizada na capital paulista foi cancelada por motivos de saúde por parte do músico e a turnê terminou cancelada.

João Gilberto foi visto cantando e tocando violão pela última vez em 2015: ele aparece em vídeos postados na rede social Facebook por Claudia Faissol, mãe de Luisa, filha caçula do cantor. João estava de pijama, tocava e cantava Garota de Ipanema ao lado da filha.

“Mas em público é diferente, ele tem que se preparar para isso. A razão disso [ausência dos palcos] é que ele não está preparado para se apresentar em público. Há que se respeitar João Gilberto”, ressalta Mello.

Devido a problemas financeiros e de saúde, sua filha Bebel Gilberto conseguiu na Justiça a interdição do músico no último dia 15 de novembro. O processo corre em segredo na 5ª Vara de Orfãos e Sucessões do Rio de Janeiro.

Pesquisador da obra de João Gilberto, Walter Garcia sintetizou a complexidade do trabalho do músico baiano como uma “contradição sem conflitos”.

“O difícil do João Gilberto é que a obra dele está sempre equilibrando contrastes e antagonismos, embora na aparência seja uma obra que não tem contradição nenhuma. Ela é toda atravessada de contradições mas elas são apresentadas como se não houvesse o conflito”, explica em entrevista ao Portal EBC.

Ele qualifica como “imensa” a contribuição do músico baiano para música, a arte e a cultura brasileira, mas ressalta que “estamos longe de compreender essa contribuição” e considera que, apesar de ter sido bastante difundida, a obra de João “aos poucos foi deixando de ser escutada como deve ser”.

“Ela é colocada numa espécie de pedestal e aí fica difícil você escutar a obra e compreender exatamente o que ela está tentando transmitir, o que está tentando expressar”, ressalta.

Para Zuza Homem de Melo, o aspecto mais difícil para a compreensão da obra de João Gilberto é a necessidade de uma audição muito concentrada em duas sonoridades diferentes, voz e violão, que se complementam.

“Uma audição do João Gilberto não é uma audição de um cantor se acompanhando ao violão. Ouvir o João Gilberto é uma audição de voz e violão ao mesmo tempo, é diferente, as pessoas precisam se exercitar para ouvir as duas coisas ao mesmo tempo”, afirma.

A grande contribuição rítmica da bossa nova é que quando o João cantava, havia um jogo rítmico entre o violão, a voz e a bateria [...]No Bim Bom por exemplo, você vê a dissociação entre o que ele faz no violão e o que ele canta, gerando essa terceira coisa que eu acho importantíssima

Depoimento de Tom Jobim a Zuza Homem de Mello, citado no livro Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto (Paz e Terra, 1999).

Walter Garcia destaca ainda outro aspecto do canto de João: “ele controla o corpo de quem está ouvindo a canção”. Isso implica em dois aspectos. Ao mesmo tempo que caracteriza uma obra de arte moderna em termos autonomia da obra, do artista e por consequência da platéia “até certo ponto”, João Gilberto age, segundo ele, como um “mandão esclarecido”.

“Como um coronel que ao dar ordens não grita, ele fala cada vez mais baixo, mas ao falar cada vez mais baixo impõe que a pessoa silencie e que no limite ela não se mova. Isso eu observei em vários shows do João Gilberto”, aponta.

Bossa Nova e Tropicália

“Um cara que eu considero realmente um gênio, que extrapolou uma posição no terreno da pesquisa cultural de pessoas informadas, para uma influência total na música brasileira”. É dessa forma que Caetano Veloso se referiu a João Gilberto, em uma entrevista concedida em dezembro de 1967 para a Rádio Cultura de São Paulo.

“Ele assimilou toda a gama de informação que se tinha verbalmente e também de uma maneira muito especial pela sensibilidade singular do João. Ele engoliu tudo com uma violência terrível e conseguiu transformar a maneira de se ouvir no Brasil até o fundo”, afirmou Caetano na ocasião.

A declaração foi feita por Caetano quando estava à frente do movimento tropicalista, que retomava na música popular elementos que haviam sido deixados de lado pela bossa nova.

João Gilberto convidou Caetano - que estava no exílio em Londres - para participar com ele e Gal Costa da gravação de um programa para a TV Tupi em 1971. - Reprodução TV Tupi

Quase dez anos após o surgimento desse gênero musical, Caetano considerava que, ao passar por um processo de vulgarização comercial, a bossa nova perdia seu vigor enquanto manifestação cultural.

“Essa palavra pra mim não tem o sentido necessariamente pejorativo. A vulgarização que eu falo é a transformação das conquistas do João [Gilberto] em êxitos, em coisas comerciais”, afirmou Caetano. Ele avaliou naquele momento que, ao passar por um processo de comercialização sem conseguir fazer frente à outros tipos de música comercial como o rock e o iê-iê-iê, a bossa nova passou a ser “uma espécie de defesa da música brasileira contra a influência da música vulgar internacional” e assim a se afastar de “um processo real”.

Veja também o especial da Tropicália

“Eu sentia que o que eu fazia era uma coisa muito mais ligada à morte do que à vida e resolvi quebrar com as amarras a certas idéias abstratas de cultura, de nacionalidade e de pureza, entende? Para conseguir me expressar de uma maneira mais rica e mais viva”, afirmou na ocasião sobre a guinada na sua carreira musical no momento da Tropicália.

Cerca de um ano antes do surgimento do movimento tropicalista, o próprio João Gilberto já havia feito um diagnóstico bastante próximo ao de Caetano, durante uma passagem de quatro meses pelo Brasil antes de voltar aos EUA, onde residia.

Quanto ao iê-iê-iê, que cada vez mais deixa o nosso samba em segundo plano no mercado brasileiro, João diz que não é contra ele, pois é uma música muito “inocente”, enquanto a bossa nova que “os meninos estão fazendo hoje, esta sim é que prejudica o nosso desenvolvimento musical, porque é pretensiosa, sem autenticidade e sem espontaneidade”, afirmou a Armando Aflalo na reportagem “João Vê Tudo Errado na Bossa Nova”, publicada no Caderno B do Jornal do Brasil em 24/04/1966.

“Não foi à toa que eles retomavam como mestre João Gilberto. Eles impediram que se enterrasse o João Gilberto prematuramente”, afirmou Décio Pignatari em relação ao movimento tropicalista, em entrevista para a Rádio Cultura de São Paulo em maio de 1968.

Diferente do Tropicalismo, que “foi mais uma ideia, um conceito e não tinha uma forma definida”, a bossa nova se tornou permanente por ter sido um movimento que mudou a estrutura da música popular brasileira, na avaliação de Tárik de Souza.

“Qualquer pessoa hoje sabe o que é bossa nova, porque ela realmente criou um padrão musical, tem uma forma musical definida. Ela ficou característica e até hoje está por aí. Não vou dizer que ela faz sucesso, mas ela existe, está na corrente sanguínea da música brasileira”, afirmou em entrevista ao Portal EBC.

Gravadora Elenco

Como diretor artístico da Odeon, Aloysio de Oliveira foi o responsável pela gravação, em 1958, dos dois primeiros discos 78 rpm de João Gilberto, além dos primeiros LPs do músico baiano: Chega de Saudade (1959) e O amor, o sorriso e a flor (1960). Ele deixou a Odeon depois que a gravadora demitiu Sylvia Telles e Lúcio Alves, artistas que tinham sido contratados a seu pedido. Levou ambos para a gravadora Philips, mas ali permaneceu por apenas um ano.

Depois de passar o ano de 1962 produzindo shows na casa Au Bon Gourmet, fundou sua própria gravadora: Elenco.

Durante os três anos de atividade com Aloysio no comando (1963-1966), a Elenco lançou mais de 60 LPs de músicos ligados à bossa nova. Além do time de músicos que integrava, a gravadora ficou conhecida também pela identidade visual de suas capas, que ficaram a cargo do fotógrafo Chico Pereira e do diretor de arte César Villela.

“O Aloysio de Oliveira tem um papel fundamental [para a bossa nova] e ele criou a gravadora Elenco justamente pra essas pessoas que estavam meio fora do sistema que as gravadoras queriam”, pontua Tárik de Souza.

Confira abaixo alguns artistas lançadas pela gravadora Elenco:



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