Mandela 100 anos


Uma vida de luta pela liberdade

Confira o especial

Uma trajetória de combate ao racismo e à desigualdade



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Por Débora Brito – Repórter da Agência Brasil

Em um pequeno vilarejo do sudeste da África do Sul nascia, há 100 anos, uma das maiores lideranças mundiais do século 20. Conhecido como um grande conciliador, Nelson Mandela teve atuação decisiva no processo que deu fim ao sistema de segregação racial da África do Sul e se tornou o primeiro presidente negro do país abrindo caminho para a construção da democracia no continente africano.

Vencedor do Nobel da Paz, em 1993, Mandela deixou um legado que resulta de um processo longo e doloroso de renúncia de sua carreira profissional e da vida familiar. Ao longo dos 95 anos de vida, muitas mudanças, recuos e avanços marcaram o engajamento de Mandela na luta por igualdade.

Na avaliação da especialista Edna Roland, Mandela foi uma figura importante para o continente africano e para o mundo.

“Ele representa uma imagem positiva, um dos maiores representantes de uma posição equilibrada, uma liderança mundial. Acho que é muito importante esse papel de Mandela de projetar para as nações africanas, como de resto para toda a população negra do mundo, esta imagem de integridade, essa capacidade de negociação, de se dirigir para todas as nações do mundo”, avaliou Edna que foi relatora-geral da 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, sediada em Durban, África do Sul, em 2001.

A subsecretária geral da Organização das Nações Unidas (ONU) e diretora executiva da ONU Mulheres, a sul-africana Phumzile Mlambo-Ngcuka, avalia que Mandela conseguiu tornar o movimento contra o apartheid – sistema de separação forçada de negros e brancos que vigorou na África do Sul – uma bandeira mundial.

“Nelson Mandela tornou a luta contra o apartheid uma luta universal pela democracia, igualdade de gênero, fim da pobreza e solidariedade global. Ele articulou para que a questão de um país fosse relevante para várias lutas e várias pessoas em todo o mundo. De maneira peculiar, ele uniu sul-africanos que estavam em posições opostas”, afirmou Phumzile.

Identidade

A trajetória de Nelson Mandela começa em 18 de julho de 1918, ano que marcou o fim da Primeira Guerra Mundial e o surto da pandemia de gripe que matou milhões de pessoas no mundo. Ele nasceu no pequeno vilarejo de Mvezo, em Transkei, no sudeste da África do Sul, uma área rural onde a vida seguia o ritmo de séculos anteriores.

Mandela pertencia ao povo Thembu, da etnia Xhosa. Ele era membro do clã conhecido como Madiba, de onde vem o nome pelo qual ficou conhecido em sinal de respeito às suas origens. O sobrenome Mandela é herança de um de seus avôs.

O primeiro nome de nascimento de Mandela é Rolihlahla, que significa na língua de sua tribo “puxar o galho da árvore”, popularmente traduzido na África como “encrenqueiro” ou “agitador”. O nome inglês Nelson só foi dado a ele no primeiro dia de aula, aos 7 anos de idade.

“Africanos da minha geração – mesmo hoje – geralmente tem um nome ocidental e um africano. Os brancos não eram capazes ou não estavam dispostos a pronunciar um nome africano e consideravam incivilizado ter um”, escreveu Mandela em sua biografia.

A longa caminhada até a liberdade

Quando criança, Mandela viu poucos brancos em Qunu, cidade onde passou a infância. O contato com brancos e membros de outras etnias só aumentou quando Mandela passou por outras cidades para se formar na educação básica e superior.

Aos 23 anos, Mandela rejeitou um casamento arranjado e fugiu para Joanesburgo, a cidade mais rica da África do Sul, onde cursou direito em uma faculdade em que era o único aluno negro.

Junto com Oliver Tambo, outro líder sul-africano antiapartheid, Mandela abriu o primeiro escritório de advogados negros da África do Sul. Os principais clientes eram pobres vítimas do sistema segregacionista. Também em Joanesburgo, teve início o envolvimento de Mandela com a militância política que o consagraria no futuro.

A partir de 1948, quando teve início o apartheid, o comprometimento de Mandela ao movimento pela liberdade se intensificou. De observador, Mandela passou a ser uma referência nas articulações que buscavam mitigar os efeitos da segregação sobre os africanos.

Sua atuação logo chamou a atenção do governo, que o incluiu na lista de líderes banidos e proibidos de circular fora de Joanesburgo e de participar em reuniões políticas. O banimento e a perseguição do governo levaram Mandela a anos de trabalho na clandestinidade. Sua casa e escritório eram constantemente alvos de revista policial. Cada movimentação tinha que ser pensada estrategicamente para fugir da polícia, mas eventualmente Mandela e seus companheiros eram presos em Pretoria, Joanesburgo e na Cidade do Cabo.

Crédito: exposição "Mandela: de Prisioneiro a Presidente", realizada pelo Instituto Brasil África.

Em 1962, Mandela foi condenado a cinco anos de prisão por incitação à greve e por deixar o país ilegalmente, quando pela primeira vez viajou pelo continente africano em busca de apoio de outros países. A viagem também serviu como o início do treinamento militar dos ativistas que queriam uma batalha armada contra o governo de minoria branca.

O plano foi descoberto e Mandela e outras lideranças foram condenados à prisão perpétua por conspiração e sabotagem contra o governo. Em 1963, Mandela entrou na prisão da Ilha Robben de onde só sairia em 1990. Ao todo, Mandela passou 27 anos de sua vida privado de liberdade.

Na prisão, Mandela tentou aproximar e reconciliar integrantes de diferentes organizações políticas. Ele também mediou conflitos entre prisioneiros e guardas e se projetou como negociador com o governo para a abertura democrática.

“Mandela é o exemplo pessoal do que um indivíduo pode fazer em seu meio, na sua sociedade, em seu contexto  cultural e, na verdade, ao mundo, porque a influência dele ultrapassa muito as fronteiras da África do Sul”, destacou a professora aposentada da Universidade de Brasília (UnB) Lourdes Teodoro, psicanalista que atua no movimento negro desde a década de 70.

Conciliador

Em meados da década de 80, ainda preso, Mandela conseguiu abrir diálogo com integrantes do governo sul-africano em busca de anistia para os presos políticos e de garantias de participação dos negros no comando do país.

O processo de negociação resultou na libertação de Mandela, em 1990, quando o governo sul-africano aceitou revogar as leis do apartheid. Liberto, Mandela viajou pelo mundo para buscar recursos para o Congresso Nacional Africano (CNA), principal partido anti-apartheid, e apoio para processo de transição política da África do Sul. Em 1993, recebeu o Prêmio Nobel da Paz junto com o último presidente do regime do apartheid, Frederik Klerk.

Em 1994, Mandela foi eleito presidente nas primeiras eleições democráticas da África do Sul. Na presidência, a gestão de Mandela foi marcada pela aprovação de uma nova Constituição para o país, com a afirmação dos princípios da liberdade, igualdade, respeito, democracia e justiça. Mandela não quis se reeleger e deixou a presidência em 1999.

“Nesse sentido ele também deixa um grande exemplo, que ultrapassa a questão racial. Ele deixa essa capacidade de compreender que o governo deve mudar de mãos, é preciso que novas experiências sejam vividas”, ressaltou a professora Lourdes Teodoro.

Mandela morreu em 5 de dezembro de 2013, aos 95 anos, devido a problemas decorrentes de uma infecção pulmonar. O corpo do ex-presidente foi velado por dez dias em Joanesburgo e Pretoria. As cerimônias de homenagem a Mandela nas duas cidades atraíram milhares de pessoas, militantes e o maior número de chefes de estado da história. Seu corpo foi enterrado em Qunu, cidade de sua infância.

África do Sul hoje


Fim do sistema de segregação racial sul-africano foi grande bandeira de Mandela


A construção de uma sociedade em que todos os humanos fossem tratados de maneira igualitária e digna, independentemente da cor da pele, foi o principal propósito de vida de Nelson Mandela. Ele percebeu ainda jovem que havia várias formas de se posicionar diante da discriminação e escolheu a luta.

“Eu tive que me separar da minha esposa e dos meus filhos, da minha mãe e irmãos, tive que viver ilegalmente em minha própria terra, tive que fechar o meu negócio, abandonar minha profissão e viver na pobreza, como muitos do nosso povo estão fazendo”, declarou em artigo à imprensa na década de 1960.

“Eu não vou me render. Somente com dificuldades, sacrifício e ação militante, a liberdade pode ser conquistada. A luta é a minha vida. Eu vou continuar lutando por liberdade até o fim dos meus dias”, completou.

Instalação do apartheid

O apartheid sul-africano teve início formalmente em 1948, depois que o Partido Nacional, formado por brancos simpatizantes do sistema nazista alemão, ganharam as eleições gerais daquele ano. Os africanos não puderam votar e a campanha do partido de minoria branca tinha slogans como o “perigo negro” e “o negro no seu lugar”.

A premissa do apartheid era a superioridade dos brancos em relação aos africanos, não brancos e indianos. Apartheid significa separação e nomeou o sistema sul-africano de segregação forçada das pessoas de acordo com a origem étnica. A população foi classificada em quatro grupos: africanos, pessoas de cor, asiáticos e brancos (europeus).

Os documentos de identificação conhecidos como “passes” eram o principal instrumento para implementar a divisão racial. Várias leis estabeleciam a separação física entre negros e brancos em diferentes áreas, como educação, saúde, transporte público, trabalho e moradia. O sistema perdurou por mais de quatro décadas.

Negros eram obrigados a portar um documento que permitia circulação pela cidade / Museu do Apartheid - Joanesburgo / Foto: Débora Brito - Agência Brasil


Massacre

Vários conflitos marcaram a vigência do apartheid. Em 1959, depois de nova vitória dos brancos nas eleições de 58, o regime ganhou força, quando foi decretada a separação das áreas onde as etnias africanas poderiam ser “cidadãs”.

Pela nova política, os negros só poderiam ser “livres” em suas próprias tribos e não poderiam se integrar à comunidade branca em nenhuma hipótese. A reação à nova lei levou a várias prisões, banimentos, tortura e assassinatos de pessoas inocentes.

Um dos episódios mais marcantes ocorreu no subúrbio de Joanesburgo, em março de 1960, quando a polícia sul-africana alvejou pelas costas centenas de manifestantes desarmados que protestavam contra o passe de identificação racial – obrigatório aos negros para que se locomovessem pela cidade.

Cerca de 70 pessoas morreram e mais de 300 ficaram feridas no episódio que ficou como conhecido como Massacre de Sharpeville. O caso repercutiu mundialmente e motivou várias ações de repúdio ao sistema do apartheid. Apesar da reprimenda internacional, o governo sul-africano decretou estado de emergência, proibiu a atuação das organizações antiapartheid e prendeu vários ativistas, entre eles, Mandela.

Em 1976, outro levante, dessa vez no bairro de Soweto, deixou feridos e mortos centenas de estudantes que protestavam contra normas racistas no sistema de ensino sul-africano. Entre os mortos, um adolescente de 13 anos, Hector Pieterson, se tornou um dos símbolos da resistência negra ao sistema de segregação.

Monumento em homenagem a Hector Pieterson, adolescente assassinado pela polícia durante protesto de estudantes contra o apartheid no bairro de Soweto em 1976 / Joanesburgo / Foto: Débora Brito - Agência Brasil


Luta armada contra o sistema

"Entrada do Museu do Apartheid representa a segregação entre brancos e negros que vigorou na África do Sul entre 1948 e 1994 / Foto: Débora Brito - Agência Brasil

Diante do endurecimento do governo, o movimento antiapartheid mudou a estratégia de combate a partir dos anos 60. Uma parte do Conselho Nacional Africano (CNA), partido que liderou a luta antiapartheid, começou a adotar ações armadas de sabotagens em órgãos públicos.

O movimento de guinada para a violência foi liderado por Mandela, que argumentou que a ação pacífica não tinha funcionado. Apesar de ser reconhecido mundialmente pelo seu temperamento pacífico e carismático, o ativista adotou, em muitos momentos de sua luta contra o apartheid, uma postura dura e chegou a defender o uso da violência para aplacar a segregação racial.

A estratégia de combate foi desenhada por meses e os ativistas foram treinados para formar uma guerrilha. O objetivo era atrair o governo para negociação. Mas a articulação de Mandela e outros líderes os levou novamente para a prisão sob a acusação de conspiração e sabotagem – cuja pena máxima era a morte.

“Durante a minha vida, eu me dediquei a esta luta do povo africano. Lutei contra a dominação sobre os negros. Eu busquei o ideal da democracia e de uma sociedade livre em que todas as pessoas vivem juntas em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal que eu espero viver para alcançar. Mas, se for necessário, é um ideal pelo qual estou preparado para morrer”, declarou Mandela durante o julgamento.

A condenação foi reduzida a prisão perpétua. Em 1963, Mandela entrou na prisão da Ilha Robben de onde só sairia quase duas décadas depois.

Pressão mundial

No início da década de 80, “Liberte Mandela” era a expressão estampada em cartazes ao redor do mundo, em shows de artistas consagrados, discursos políticos progressistas e manifestações de movimentos sociais. O recado internacional pelo fim do apartheid ainda era dado por meio de boicotes políticos e econômicos ao governo da África do Sul e apoio a importantes ativistas, como o bispo sul-africano Desmond Tutu, que também atuou ativamente contra o apartheid e recebeu o Nobel da Paz, em 1985.

No Brasil, vários atos em solidariedade a Mandela foram realizados pelo movimento negro em frente à embaixada da África do Sul, em Brasília, e em outros consulados sul-africanos do país. No ano de 1966, Brasília sediou um seminário internacional da Organização das Nações Unidas (ONU) para discutir a questão do apartheid e de Mandela.

Foram discutidas formas de boicote ao governo sul-africano e foi instituído o 21 de março como o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial. A data faz alusão ao Massacre de Shaperville, um dos momentos mais duros do apartheid.

“É uma data de solidariedade à luta que se fazia na África do Sul. A indicação do 21 de março sai do seminário de Brasília e vai para a Assembleia Geral das Nações Unidas que aprova a indicação. E esta data foi incorporada no calendário e vai ser seguida todos os anos pelo movimento negro brasileiro”, lembrou Edson Cardoso, que participou do seminário.

Um farol para a luta brasileira

O combate ao apartheid se tornou uma das principais frentes de luta do movimento negro brasileiro, que passou a pressionar o governo a romper as relações diplomáticas com a África do Sul, em meados da década de 1980.

Em visita ao Brasil em 1991, Nelson Mandela se encontrou com o ativista negro e parlamentar Abdias do Nascimento / Foto: Ipeafro

“É realmente uma contradição terrível que o Brasil, o maior país negro do mundo depois da Nigéria, que tanto se proclama o berço da democracia racial e que deveria liderar internacionalmente a luta contra o apartheid, mantenha relações diplomáticas e comerciais com o governo sul-africano”, declarou em 1985 o então deputado federal Abdias do Nascimento

“Mais do que uma contradição e um infortúnio, a cumplicidade do Brasil com o apartheid é uma cegueira política de graves consequências para o futuro de nossas relações internacionais. Porque, mantendo esse tipo de endosso tácito ao governo assassino sul-africano, o Brasil se mantém aliado das forças mais retrógradas e obscurantistas do nosso tempo”, completou Nascimento.

A pressão pela libertação de Mandela serviu de impulso para o movimento negro brasileiro, principalmente no período da Constituinte. A nova Carta incluiu o repúdio ao terrorismo e ao racismo entre os princípios fundamentais das relações internacionais do Brasil.

“Na constituição tem uma proibição de relacionamento do Brasil com estados que tenham o racismo como prática. Isso dá uma ideia de como repercutiu aqui, entre nós, a luta que se travava lá [na África do Sul] e que era vista por todos nós como decisiva não só para negros, mas para a humanidade como um todo”, analisou o pesquisador e militante Edson Cardoso.

Visita ao Brasil

Mandela fez uma visita ao Brasil em 1991, um ano depois de ser libertado da prisão, com o intuito de buscar apoio para a sua eleição. Ele passou por São Paulo e Rio de Janeiro e fez uma rápida visita a Brasília onde recebeu o título de doutor honoris causa na Universidade de Brasília (UnB).

“Foi um momento simbólico, a universidade inclusive estava se abrindo ´para o sistema de cotas para os afrodescendentes. Havia uma vontade de remissão de todas as ofensas causadas ao povo negro historicamente, essa necessidade de resgatar perante a história todos os malefícios causados as populações africanas”, destacou o professor José Carlos Córdova Coutinho, um dos organizadores da visita de Mandela à UnB.

Já no Rio, ele participou de uma recepção na Praça da Apoteose. O produtor cultural e documentarista Asfilófilo Olveira Filho, o Filó Filho, é uma das testemunhas da passagem do líder sul-africano e sua esposa, Winie Mandela e fez um dos poucos registros históricos, em vídeo, da passagem dele pela capital fluminense.

“Em um país racista como o Brasil, a grande mídia ignorava a questão. Tanto que quando ele veio não teve cobertura. As imagens daquele momento histórico são nossas, da comunidade”, explicou Filó, o principal nome do Cultne, produtora que reúne imagens e registros históricos do movimento negro.

Crédito: Cultne, Acervo Digital de Cultura Negra

O evento atraiu mais de 50 mil pessoas, com a presença de artistas, como Martinho da Vila, Paulinho da Viola e Lecy Brandão.

O compositor, escritor e conhecedor da cultura afro-abrileira, Altay Veloso, também esteve com Mandela no Brasil e se emocionou a lembrar do dia. “Acho que foi o homem mais importante do século. Impressionante. Alguém que fica tantos anos na prisão e, quando sai, sai com um sorriso nos lábios. Pronto para o perdão. É uma coisa muito séria, um belo exemplo”, disse Veloso que compôs a canção A Sinfonia da Paz, quando o líder sul-africano foi libertado da cadeia.

Junto com a cantora Alcione, na Apoteose, ele se apresentou ao líder sul-africano. “Quando Mandela veio ao Brasil, Alcione me chamou. Me acordou às 9h, que é hora de eu estar no meio do sono, e falou assim: ‘Pode acordar ele, eu tenho boa notícia. Altay, você quer cantar aquela música para o Mandela?’ E eu: ‘ Meu Deus, não é possível’. E foi fantástico. Desde então, ele me acompanha. Tenho no estúdio um quadro dele bem grande. Quando fico meio chateado ou cansado do trabalho, eu olho para ele assim, como se ele me dissesse: ‘Tá cansado, negão? Fiquei 27 anos em cana.’”.

Foto: Arquivo Ipeafro

Mandela se depara com o racismo

Estudiosa da questão racial e diretora do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro Brasileiros (Ipeafro), Elisa Larkin Nascimento, teve a oportunidade de discutir com Mandela a questão racial no Brasil, junto com Abdias do Nascimento, uma das principais lideranças do movimento negro brasileiro. Naquele momento, o Brasil era tido como uma democracia racial, pois, não havia um regime de segregação como vigorou nos Estados Unidos ou na África do Sul e todos brasileiros tinham direitos políticos – uma das reivindicações dos movimentos contra o apartheid.

“Lembro-me de alguns encontros pessoais, especialmente, um almoço, em que Abdias faz questão de conversar com Mandela e pedir que ele reforçasse, nas entrevistas à imprensa, a questão do racismo no Brasil”, contou. “Pediu para que ele compartilhasse o que observava, não no sentido de uma harmonia social, mas a realidade que o movimento negro lhe apresentava.”

Elisa lembrou que Mandela foi levado para inaugurar uma escola pública, batizada em sua homenagem, em Campo Grande, na periferia da cidade. No caminho, o sul-africano pôde relacionar a desigualdade social às características da população, evidenciando a segregação.

Segundo as dirigentes da escola, que ainda hoje trabalham na unidade, o Centro Integrado de Educação Pública Nelson Mandela ficou lotado, com mais de mil pessoas ao redor.

Longo caminho

O apartheid foi oficialmente extinto em 1990, quando o governo sul-africano aceitou revogar as leis segregacionistas. O processo, entretanto, foi longo e repleto de conflitos. As primeiras eleições democráticas na África do Sul ocorreram em 1994, quando Mandela foi eleito presidente do país.






Luta contra o apartheid impulsionou movimento de combate ao racismo no Brasil


Especialistas dizem que desigualdade racial persiste de forma cruel no país

Reconhecido como um crime contra a humanidade pela Organização das Nações Unidas (ONU), o apartheid sul-africano foi instituído em 1948 com a premissa da superioridade dos brancos em relação aos negros. O sistema deixou ao longo de quatro décadas milhares de mortos. Durante vários anos, o regime foi combatido dentro e fora da África do Sul.

Pesquisadores e ativistas entrevistados pela Agência Brasil avaliam que a repercussão negativa do regime segregacionista da África do Sul e da prisão de Nelson Mandela em 1963 motivaram a luta pela igualdade, mas não foram suficientes para que outras nações, entre elas o Brasil, eliminassem a desigualdade racial.

Na avaliação de especialistas, ainda hoje o racismo no Brasil opera de forma tão cruel quanto o dos sistemas segregacionistas de outras nações. Em todas as áreas, os negros estão em situação mais vulnerável que os brancos.

“As formas de existência do racismo no Brasil são talvez as mais cruéis. O racismo brasileiro tem a capacidade de se ocultar e criar uma dúvida tanto na cabeça dos que o praticam, quanto dos que o sofrem”, afirmou Edna Roland, ativista do movimento negro e relatora da 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, realizado em Durban, África do Sul, em 2001.

A opinião é compartilhada pela psicanalista Lourdes Theodoro, que viveu muitos anos em outros países e participou de diferentes atividades e pesquisas acadêmicas no continente africano. “No Brasil, acontece a mesma coisa [que na África do Sul], a educação dos pobres sempre foi diferente da dos ricos, começa no tempo da escravidão e, mesmo depois da abolição em 1888, os negros não tinham direito automaticamente a serem escolarizados. Eu não vejo o Brasil como nada mais suave ou delicado se comparado ao apartheid da África do Sul. O que eu vejo é que lá eles assumiam abertamente e aqui no Brasil o branco nunca assumiu”, analisou.

Genocídio

Os ativistas destacam que, além da violência psicológica, a forma mais visível do apartheid brasileiro é o número crescente de negros mortos de forma violenta no país. De acordo com o Atlas da Violência divulgado recentemente pelo Fórum de Segurança Pública, a taxa de homicídios de negros é duas vezes e meia superior à de não negros. O documento revela que, em relação à violência letal, “é como se negros e não negros vivessem em países completamente distintos”.

“O movimento negro brasileiro vem gritando há décadas que há uma sangria da juventude negra desse porte. São pilhas de cadáveres. Por ano, nós matamos mais de 62 mil pessoas em que a maioria é de jovens negros”, destacou o jornalista e ativista do movimento negro Edson Cardoso.

“Uma sangria dessa tem qual impacto na perda de talentos, de vocações, tem qual impacto no desenvolvimento da nossa sociedade? É como se isso não nos dissesse respeito, a sociedade se porta como se fosse um problema dos negros, esse é o nosso apartheid”, comparou Cardoso.

Edna explica que o racismo brasileiro é um “inimigo resiliente”, cuja “engenhosidade” pode ser mais cruel do que o apartheid porque promove uma enorme exclusão da população negra, que tem “ausência quase absoluta nos espaços de poder do país.”

A pesquisadora ressalta ainda que os Estados Unidos, onde a segregação racial foi legalizada no início do século 20, foram os primeiros a vivenciar o movimento pelos direitos civis de todos os cidadãos, negros ou brancos. Em seguida, veio o processo de destruição do apartheid na África do Sul que, apesar da agressividade, ainda permitiu que fossem formadas algumas instituições educacionais negras que permitiram aos africanos acesso a políticas públicas. Já o Brasil, sob o mito da democracia racial, ainda está no processo de enfrentamento ao racismo.

“Quando você entra num shopping de Salvador, uma cidade de maioria negra, e você praticamente fica procurando negros, a tecnologia usada para criar aquela realidade é a do apartheid. É assim que nós somos. Não está na lei, as pessoas não assumem. Embora as vítimas sejam negras, as pessoas acham que se deve ao local de moradia e ficam procurando uma série de razões para explicar algo que se perpetua para além das conjunturas”, completou Cardoso.

Políticas públicas

Para os especialistas, as ações de combate ao racismo no Brasil deveriam estar integradas às políticas públicas.

Cardoso cita como exemplo a falta de políticas efetivas na área de segurança pública que tenham o racismo como foco, mesmo com a confirmação da disparidade entre os assassinatos de jovens negros e brancos.

"A grande lição que Mandela deixa é a resiliência, a capacidade de superar todo sofrimento que passou e colocar a causa pela igualdade acima de todos os interesses pessoais", diz Lourdes Teodoro / Foto: Valter Campanato - Arquivo Agência Brasil

Para Lourdes Teodoro, que também foi uma das fundadoras do Congresso Nacional Afro-brasileiro, inspirado na experiência do partido de Mandela na África do Sul, o racismo brasileiro só poderá ser mitigado a partir de seu reconhecimento e de pressão política internacional, como ocorreu com o apartheid sul-africano.

“O que acontece conosco é que não chegamos em nenhum momento a construir essa coesão interna que leve a compreensão mais profunda do que é o racismo brasileiro e a buscar também esse apoio internacional. Os instrumentos comprobatórios desse racismo talvez precisem ganhar uma outra dimensão na prática do ativismo para que isso se torne realmente uma força que possamos usar fora e dentro do Brasil para conseguirmos sensibilizar pessoas, governos e instituições para apoiar nossa luta”, avaliou.


Apartheid Brasileiro

Trabalho

Fonte: Pnad IBGE 2018

Educação

* Os dados são referentes aos brasileiros com 25 anos de idade ou mais
Fonte: IBGE/Pnad Educação 2017

Violência

Fonte: Ipea e Fórum de Segurança Pública (Atlas da Violência 2018)

Saúde

Fonte: Pesquisa Nacional de Saúde (IBGE 2013)

Primeiro presidente negro da África do Sul,
Mandela liderou debate sobre nova Constituição


A chegada de Nelson Mandela ao poder ocorreu depois de ao menos quatro anos de intensos conflitos. Apesar de o apartheid ter começado a cair em 1990 – mesmo ano em que Mandela deixou a prisão, episódios violentos marcaram a transição para o período democrático até 1994.

Aos poucos, o governo sul-africano liderado por brancos, em negociação com o Congresso Nacional Africano (CNA), principal partido anti-apartheid, adotou medidas para aplacar os focos de violência policial. Também gradualmente, escolas e outros espaços de maioria branca foram abrindo vagas para a entrada de negros.

Mandela iniciou uma série de viagens ao exterior em busca de apoio ao seu partido e em busca pela paz na África do Sul. Ele pedia que os países derrubassem os embargos políticos e econômicos impostos a África do Sul durante o apartheid.

A atuação de Nelson Mandela como conciliador resultou na conquista do Nobel da Paz, em 1993. A homenagem foi dividida com o então presidente Frederic Williem de Klerck, o último presidente branco do país.

No ano seguinte, Mandela foi eleito presidente da África do Sul, depois de mais de três séculos de dominação dos brancos. Cerca de 22 milhões de eleitores votaram nas primeiras eleições democráticas do país.

No pleito de 94, também foi eleito o primeiro parlamento democrático da África do Sul, com grande maioria dos integrantes do partido de Mandela, o CNA. O Partido Nacional, que comandou o apartheid, tinha a segunda maior bancada entre os 480 congressistas.

Constituição

O Congresso recém-eleito começou a elaborar uma nova constituição para o país. A essência do novo texto, aprovado em 1996, traz sete valores fundamentais: democracia, igualdade, reconciliação, diversidade, responsabilidade, respeito e liberdade.

No preâmbulo da lei suprema do país, os congressistas destacaram a “cura” das divisões do passado e o estabelecimento de uma sociedade baseada nos valores democráticos, na justiça social e nos direitos humanos e um governo baseado na vontade do povo.

A constituição aprovada destacou ainda que a lei deve proteger e promover qualidade de vida para todos os cidadãos. O texto foi inspirado na Carta da Liberdade elaborada pelo CNA ainda na década de 40 e que se tornou referência para atuação do movimento antiapartheid por mais de 50 anos.

“Para a África do Sul, Nelson Mandela representou um novo começo para reconciliar pessoas que estiveram em oposição por séculos. Ele também colocou novos assuntos na mesa de negociação para que todos lutassem”, disse a sul-africana Phumzile Mlambo-Ngcuka, subsecretária geral da Organização das Nações Unidas (ONU) e diretora executiva da ONU Mulheres.

Presidência

Em quatro anos de governo, Mandela restabeleceu relações diplomáticas com vários países da África e de outros continentes. Uma de suas primeiras ações foi anunciar que a África do Sul seria signatária da Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU).

“Nelson Mandela assegurou que a luta pelo fim da discriminação racial e de gênero fosse institucionalizada na lei, na Constituição”, disse Phumzile Mlambo-Ngcuka

A corte Constitucional aboliu a pena de morte e foi formada uma comissão da verdade e da reconciliação para investigar os casos de tortura e outras violações de direitos contra os negros segregados durante o apartheid. A comissão também avaliava a possibilidade de conceder anistia aos crimes políticos cometidos no período.

Mandela também decretou uma nova lei de terras revogando um ato discriminatório do início do século 20 que tirou a posse da terra de muitos africanos.

Na área educacional, o número de negros na universidade aumentou de cerca de 36 mil (1984) para quase 150 mil em 1994, primeiro ano que o número de africanos superou o de brancos em uma das principais universidades de Joanesburgo.

Apesar do grande apoio da maior parte da população, Mandela não quis se reeleger e deixou a presidência em 1999. Em 2004, Mandela anunciou que deixava definitivamente a vida pública.






Experiência de Mandela no cárcere inspirou legislação prisional


Brasil ainda descumpre regras, dizem especialistas

A experiência de Mandela nas prisões da África do Sul e sua luta pelos direitos dos encarcerados inspiraram a Organização das Nações Unidas (ONU) a elaborarem as chamadas regras de Mandela, normas mínimas universalmente reconhecidas para orientar os países no tratamento dos presos.

Os países signatários são encorajados a promover condições humanitárias de encarceramento e valorizar o trabalho dos profissionais do sistema prisional como um serviço social.

As regras foram adotadas inicialmente em 1955, no Primeiro Congresso sobre Prevenção ao Crime e Tratamento de Infratores. Ao todo, são 122 regras que adotam um paradigma de encarceramento com foco na justiça e que reforçam a necessidade de se garantir a dignidade para os privados de liberdade.

A ONU reconhece que nem todos as práticas podem ser aplicadas uniformemente devido à diversidade das realidades jurídicas, sociais e econômicas dos países, mas quer que as normas sirvam de estímulo para adoção de medidas de combate à violação de direitos nos presídios.

As regras foram revisadas em 22 de maio de 2015, quando ganharam o nome do líder sul-africano. Na revisão, as normas foram adequadas a diversas legislações internacionais.

Direitos dos presos

As regras de Mandela entendem que a privação da liberdade por si só já é uma penalidade ao preso, que não deve ser submetido a condições extras de sofrimento nem perder sua dignidade durante o cumprimento da pena.

“A pena privativa de liberdade já traz em si um sofrimento que é a dificuldade de se autodeterminar, você não ter a possibilidade de se locomover, de ir e vir. A pessoa é privada também, no caso do Brasil, de direitos políticos. Provocar outros sofrimentos além do próprio sofrimento intrínseco da pena é ilegal, não deveria ocorrer”, explicou Francisco Crozera, assessor jurídico da Pastoral Carcerária de São Paulo.

A primeira regra do documento diz que nenhum preso deve ser submetido à tortura ou tratamentos e sanções cruéis, desumanas ou degradantes. Todos os presos devem ter acesso à alimentação de qualidade, água potável e a serviços de saúde física e mental. O detento só poderá ser isolado em confinamentos especiais, conhecidos como solitárias, sob autorização de autoridade competente.

Outra regra diz que “as celas ou quartos destinados ao descanso noturno não devem ser ocupados por mais de um preso”. Há também a recomendação para que as janelas sejam grandes o suficiente para permitir a entrada de luz natural e ar fresco para que as instalações sanitárias sejam limpas e adequadas.

O documento também estabelece que as regras devem ser aplicadas com imparcialidade, independentemente da condição social, cor, religião, gênero e outras características dos presos. E orienta o sistema prisional a não adotar vestimentas ou rotinas que possam denegrir a imagem pessoal do detento.

Entre as regras há ainda a recomendação para padronizar os procedimentos de registro dos presos e para que não haja a admissão em estabelecimento prisional de nenhuma pessoa que não tenha ordem de detenção válida. As regras também destacam a necessidade de cuidado diferenciado com crianças, adolescentes, mulheres, pessoas com deficiência física ou mental no sistema penitenciário.

África do Sul

O governo da África do Sul vai lançar as regras este mês, no bojo da programação que celebra o centenário de Mandela. Segundo o Ministério da Justiça da África do Sul, o país tem atualmente mais de 163 mil detentos em 243 estabelecimentos prisionais. O déficit prisional sul-africano é de pelo menos 44 mil vagas.

Além de ser conhecido como o Dia de Mandela, data instituída pela ONU, o 18 de julho também é lembrado como Dia pelos Direitos dos Presos, em memória aos 27 anos de cárcere de Mandela.

“A figura de Mandela é muito importante para essas regras e o caráter simbólico tanto do lado da punição e da repressão, mas também do outro lado de tentar garantir os direitos, tentar uma mudança de política das pessoas que cuidam do cárcere, isso é o mais importante”, destaca Henrique Apolinário, advogado da organização de direitos humanos Conectas

Realidade brasileira

O Brasil participou ativamente do processo de revisão das regras de Mandela em 2015. O país tem 1498 estabelecimentos prisionais cadastrados, entre penitenciárias, cadeias públicas, hospitais de custódia, colônias agrícolas, casas do albergado e centros de observação criminológica. Atualmente, o sistema carcerário brasileiro tem 700 mil presos para cerca de 300 mil vagas.

“Sem dúvida, o Brasil negligencia este legado. As condições das prisões no Brasil são lamentáveis. Nós temos um sistema em que as prisões estão superlotadas com pessoas que estão lá mofando, morrendo aos poucos, sem ter tido a oportunidade de serem ouvidas e terem julgamento digno”, critica a relatora da 3a Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em Durban (2001), Edna Roland.

A ativista destaca ainda que o sistema é feito para não recuperar ninguém e acaba gerando mais criminalidade e violações em todas as áreas como, justiça, educação e saúde.

A organização de Direitos Humanos, Conectas, destaca que, apesar de ter se comprometido com vários tratados internacionais de defesa dos direitos humanos dos presos, o país viola praticamente todos os princípios e trata as regas de Mandela como “letra morta”.

“O descumprimento dessas regras no Brasil passa pelo hiper encarceramento e pelo seu aspecto mais visível que é a superpopulação carcerária, população basicamente muito maior do que a capacidade máxima suportaria”, afirmou Henrique Apolinário, advogado e assessor do programa de Violência Institucional da Conectas.

O advogado explica que, como o documento não é vinculante, o Estado cumpre as regras se quiser ou conforme a realidade do país. Para serem válidas, as medidas devem ser implementadas por meio de projetos de lei e políticas públicas e é neste estágio que o Brasil está.

De acordo com a Pastoral Carcerária, alguns estados brasileiros têm condições de cumprir parte das regras. Entretanto, de forma geral, a superlotação nos presídios do país impede que as normas sejam implementadas de forma satisfatória.

“A superlotação dificulta completamente a aplicação das regras mínimas, dificulta a assistência jurídica, a assistência social, a assistência material ao preso. O Estado não tem capacidade de abrigar adequadamente as pessoas que prende, porque está prendendo uma quantidade muito maior do que a capacidade que as unidades têm”, analisa Crozera.

O assessor jurídico completa que o fenômeno do encarceramento em massa se intensificou nos últimos 30 anos e que, para interrompê-lo, o Estado deve restringir a pena de prisão a casos mais graves e extremos.

“As próprias regras de Mandela enfatizam a necessidade de se buscar penas alternativas e justiça restaurativa para diminuir o número de presos provisórios, ou seja, resguardar a pena privativa de liberdade ou a custódia dos presos provisórios a casos mais extremos, e não utilizar isso para toda e qualquer situação”, argumenta o especialista.

A Agência Brasil entrou em contato com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), mas não obteve retorno até a publicação da reportagem.

Tratados como animais


Crédito: exposição "Mandela: de Prisioneiro a Presidente", realizada pelo Instituto Brasil África.

Depois de ser condenado a prisão perpétua em 1964, Nelson Mandela passou quase três décadas de sua vida preso, a maior parte do tempo na Ilha Robben, local escolhido pelo governo da África do Sul para isolar presos políticos e autores de crimes considerados hediondos.

Nas experiências de privação de liberdade, Mandela testemunhou as precárias condições do sistema prisional sul-africano. Em sua biografia, Mandela conta que foi colocado em celas insalubres, sem nenhuma ou pouca iluminação e ventilação, sem local apropriado para higiene, e que passou fome e frio. Todos eram maltratados com xingamentos e alguns chegaram a ser torturados física e psicologicamente.

“Dizem que ninguém conhece verdadeiramente uma nação até que esteja dentro de suas prisões. Uma nação não deveria ser julgada pelo modo como trata seus mais altos cidadãos, mas os mais pobres – e a África do Sul tratava seus cidadãos prisioneiros como animais”, relatou Mandela em sua biografia.

O sistema segregacionista também operava dentro das prisões, onde presos não africanos recebiam melhor tratamento, roupas e comida em relação aos presos negros e africanos. Diante das más condições das prisões, Mandela se tornou porta-voz dos direitos dos presos.

Durante os 18 anos em que esteve detido na ilha Robben, Mandela assumiu a liderança nos movimentos de reivindicação por melhores condições na rotina da prisão.

A liderança rendeu algumas melhorias para os presos, mas também algumas penalidades a Mandela, que foi colocado várias vezes em celas solitárias.

Mandela foi diagnosticado com tuberculose, doença infecciosa que atinge centenas de encarcerados em prisões insalubres de todo o mundo.

“A prisão não só rouba sua liberdade, mas tenta tirar sua identidade. Por definição é um estado autoritário que não tolera independência ou individualidade. Como um lutador pela liberdade e como homens, precisamos lutar contra a tentativa da prisão de roubar estas qualidades”, escreveu Mandela






Mandela inspira projetos educacionais e formação de jovens líderes


O legado na defesa dos direitos humanos rendeu a Nelson Mandela inúmeros prêmios e homenagens ao redor do mundo. O principal líder africano da história se tornou patrono de diferentes entidades educacionais e inspira iniciativas de promoção da igualdade.

“Mandela foi capaz de unir raça, classe e gênero como questões legítimas para que todos lutassem”, afirmou a sul-africana Phumzile Mlambo-Ngcuka, subsecretária-geral da Organização das Nações Unidas (ONU).

Mandela é lembrado não só no mundo político, mas principalmente pelo movimento negro e por organizações que têm como objetivo a formação de jovens lideranças.

“Nelson Mandela, para nós quilombolas, é um exemplo de resistência, de luta, de persistência, porque ele lutou, persistiu, foi injustiçado e venceu. O que mais marcou foi o modo de ele perdoar. Ele lutou pela reconciliação”, destacou Sandra Maria da Silva Andrade, 58 anos, líder da comunidade quilombola Carrapato de Tabatinga, de Minas Gerais.

No Brasil, Mandela também é referência para projetos que têm a educação como ferramenta de empoderamento da juventude para superar a desigualdade e pobreza. “Nelson Mandela foi um dos cidadãos do mundo que entendeu que a educação se dá nos desafios do dia a dia. Ele usava todos os acontecimentos do mundo, da vida, do povo como um instrumento chave no processo educacional de si mesmo e do seu povo”, destacou Frei David Santos, fundador da Educafro, organização que trabalha pela inclusão de negros e pobres em universidades por meio de bolsas de estudo.

"Nelson Mandela foi um cidadão que entendeu que educação se dá nos desafios do dia a dia. Ele usava todos os acontecimentos do mundo como instrumento chave no processo educacional", diz frei David / Foto: Fabio Pozzebom - Agência Brasil

Frei David considera que Mandela também pode contribuir para que o Brasil desenvolva e aprofunde uma consciência de negritude e acredita na importância de um aprofundamento sobre os princípios da Constituição Federal desde a escola.

“O Brasil é um país que vivencia ingenuamente a formação do cidadão. As escolas fingem que ensinam e os alunos fingem que aprendem. E Nelson Mandela foi um dos líderes expoentes dessa consciência cidadã da negritude, que no Brasil ainda, com raras exceções, não fizemos”, declarou.

Inspirado em Mandela, a Educafro lançou este ano a plataforma Engaja Negritude para mobilizar jovens negros a formar um movimento de cidadania. “O objetivo é trabalhar educação política da juventude, justamente o que fez Nelson Mandela, que trabalhou intensamente educação política do seu povo. Esta plataforma quer trabalhar com a juventude e, em seguida, contagiar todas as faixas etárias”, explicou Frei David.

Pensar coletivamente



Mandela é inspiração para projetos educacionais em todo o mundo / Foto: ©Instituto Cultural Steve Biko

O trabalho do Instituto Steve Biko, nome de um dos ativistas que atuou com Mandela pela democracia na África do Sul, também é baseado no legado dos líderes negros sul-africanos. Situado em Salvador (BA), o instituto foi o primeiro a oferecer curso pré-vestibular para negros no Brasil, com o objetivo de combater a discriminação racial, inseri-los no espaço acadêmico e promover sua ascensão social.

O instituto oferece a disciplina Cidadania e Consciência Negra. Nas aulas, a figura de Mandela e outros ícones negros são lembrados como frutos de processos de luta, que tiveram a educação como uma das principais ferramentas.

“Mandela passou por violências e resistiu. A gente considera que nenhuma luta da comunidade negra ignorará estes processos. A gente prepara o aluno para ter o equilíbrio emocional e psicológico que esses sujeitos precisaram ter para passar por tudo o que passaram”, afirma Tássio Mota, professor de história do Instituto Steve Biko.

Outro objetivo é gerar nos alunos uma consciência de que a carreira profissional deve ser formada com foco na sociedade como um todo.

“Pensar coletivamente é a palavra-chave. É, sobretudo, o legado mais importante que Mandela e Steve Biko nos trazem”, completou o professor.

Novos Mandelas

Em 1987, quando se levantou um clamor internacional pela libertação de Mandela da prisão, nascia, em São Paulo, Abayomi Mandela. O jovem negro de 32 anos foi batizado com o sobrenome do líder sul-africano pelos pais que militavam no movimento negro brasileiro nas décadas de 70 e 80.

“Meus pais escolheram meu nome quando Mandela estava preso ainda. Ele tinha sido condenado à prisão perpétua e estava na prisão. Teve uma campanha internacional pela libertação dele e meus pais resolveram fazer essa homenagem”, conta Abayomi, nome que, em Yorubá, significa “aquele que traz felicidade”.

Aos 12 anos, ele leu pela primeira vez uma das biografias de Mandela e, desde então, procura seguir o exemplo de seu homônimo sul-africano.

“Me esforço para que o nome que eu recebi não tenha sido só um nome, mas sim um guia. Que eu dê continuidade. Já que eu recebi esse nome que eu também possa construir um legado dentro de tudo o que Mandela já construiu”, completou.

Graduado em engenharia florestal e mestre em desenvolvimento sustentável, Abayomi acredita que a educação que recebeu fez a diferença na militância pelo fim da discriminação racial no país.

“Qualquer coisa que se pretenda fazer ou qualquer lugar que se pretenda chegar passa necessariamente pela educação. E ela é a chave para a libertação da mente das pessoas que estão em posições mais desprivilegiadas na sociedade”, destacou Abayomi Mandela.






    Mandela: Uma trajetória de combate ao racismo e à desigualdade

  • 1918

    18 de julho - Nascimento de Rolihlahla Mandela em Mvezo, Transkei, África do Sulu

  • 1925

    Inicia a vida escolar em Qunu e recebe da professora o nome inglês “Nelson”

  • 1930

    Depois da morte de seu pai, Mandela é adotado pelo chefe da tribo Thembu

  • 1934

    Aos 16 anos, é circuncidado em uma cerimônia tradicional Xhosa e recebe o nome Dalibhunga, que significa facilitador do diálogo.

  • 1939

    Ingressa na Universidade de Fort Hare

  • 1941

    Fuga para Joanesburgo, depois de ter sido expulso da universidade e ter rejeitado casamento arranjado pela sua família adotiva

  • 1942

    Mandela começa a frequentar informalmente as reuniões do partido antiapartheid Congresso Nacional Africano (CNA)

  • 1943

    Ingressa no curso de direito na Universidade de Witts, em Joanesburgo. Mandela era o único aluno negro da universidade.

  • 1948

    O Partido Nacional que se inspirava no nazismo alemão ganha nas eleições e institui oficialmente o apartheid.

  • 1950

    Mandela é eleito presidente da Juventude do Congresso Nacional Africano (CNA)

  • 1952

    Começa a campanha de ativistas contra as leis do apartheid. Negros eram encorajados e desafiar a imposição de regras de segregação.

  • 1956

    Mandela é detido pela primeira vez sob suspeita de traição contra o governo. Julgamento se arrastou por mais de 4 anos até a absolvição por falta de provas

  • 1958

    Mandela se divorcia da primeira esposa, Evelyn Mase, e se casa com Nomzamo Winnie Madikizela

  • 1960

    Massacre de Sharpeville: dezenas de negros são alvejados pela polícia durante um protesto contra o apartheid. Governo sul-africano decreta estado de emergência contra o chamado “perigo negro” e bane os movimentos antiapartheid, entre eles, o CNA.

  • 1961

    Mandela entra na clandestinidade e forma o braço armado do CNA

  • 1962

    Pela primeira vez, Mandela sai da África do Sul em busca de apoio e treinamento militar para o CNA

  • 1963

    No retorno ao país, é detido em uma emboscada e vai, pela primeira vez, para a prisão na Ilha Robben

  • 1964

    Durante julgamento em que é condenado à prisão perpétua por sabotagem e conspiração contra o governo, Mandela faz famoso discurso em que afirma estar disposto a morrer pela liberdade.

  • 1969

    Filho mais velho de Mandela morre em um acidente de carro. Mandela não é liberado da prisão para ir ao funeral.

  • 1980

    Mandela e outros líderes do CNA são enviados para uma prisão especial na Cidade do Cabo

  • 1985

    Começam as negociações com o governo sul-africano para libertação de Mandela e de outros ativistas

  • 1988

    Mandela é diagnosticado com tuberculose

  • 1990

    Depois de 27 anos na prisão, Mandela é solto aos 71 anos. A censura ao CNA é suspensa.

  • 1991

    Mandela é eleito presidente do partido (CNA) e inicia uma série de visitas a outros países, entre eles, o Brasil

  • 1993

    Mandela recebe o Prêmio Nobel da Paz junto com o último presidente branco do apartheid, Frederik de Klerk

  • 1994

    Mandela é eleito e se torna o primeiro presidente negro da África do Sul

  • 1996

    Mandela promulga a nova constituição da África do Sul

  • 1998

    Aos 80 anos, se casa com a terceira esposa, Graça Machel, e faz sua segunda visita ao Brasil

  • 1999

    Mandela decide não concorrer à reeleição para a presidência

  • 2004

    Aos 86 anos, anuncia a saída da vida pública

  • 2013

    05 de dezembro – Mandela morre por complicações pulmonares

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Reportagens: Débora Brito e Isabela Vieira / Agência Brasil

Colaboração: Luciana Barreto

Edição: Lílian Beraldo

Design e implementação: Alexandre Krecke e Marcelo Nogueira