Entre bombas, peixes, verdes e cidadania


Iniciativas e soluções sertanejas de convivência com a seca servem de exemplo de transformação e desenvolvimento comunitário em meio ao semiárido.

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“A água tinha subido, alcançado a ladeira, estava com vontade de chegar aos juazeiros do fim do pátio. Sinhá Vitória andava amedrontada”.

Trecho do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos


Oitenta anos depois da ficção, o sertão também tem novos caminhos reais. Em pleno semiárido nordestino, o tempo das águas ajuda a encontrar soluções para quando não houver nuvem no céu.

Por Luiz Cláudio Ferreira e Gustavo Gomes

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Bomba. A novidade parecia vir de cima. Como uma brincadeira de ataque. Não só do desenho fustigado feito das nuvens, como se fossem moldados a mão. No tempo invernoso de início do ano, a novidade surge em temporais tão rápidos que, em poucos instantes, transformam a areia em barro.

Depois de seis anos sem chuvaradas permanentes no sertão, a boa-nova seria um minuto, uma hora a mais de água no corpo, no campo, no rio. O sertanejo chama de inverno o que é raro. O tempo das águas é como um estrondo. A família de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, se assustou com a chuva que poderia deixar a vida sem chão.

Oitenta anos depois da ficção, o sertão também tem novos caminhos reais. Em pleno semiárido nordestino, o tempo das águas ajuda a encontrar soluções para quando não houver nuvem no céu. Por ser vital conviver com a natureza tão seca, novidades vêm de cima, do lado, de baixo. Uma delas é uma bomba...de semente.

Alunos da rede pública de Juazeiro do Norte e do Crato, no estado do Ceará, transformaram a brincadeira de lançar bombinhas criando um estilingue maior. A bomba - feita de 20% de barro, e 80% de esterco e com a semente de alguma árvore escondida no centro - é lançada em algum lugar desmatado.

Nessa época mais molhada, as sementes fixam melhor no chão, conforme explica a coordenadora do projeto, a permaculturista Ana Cristina Diogo, que fundou uma organização não governamental (Juriti) que promove bem mais do que uma brincadeira de jogar bombinhas na floresta. Ela explica que recuperar a mata nativa em regiões sertanejas, como a do Cariri (CE), é fundamental para preservar o solo e, por consequência, os recursos hídricos na Chapada do Araripe.

“É um trabalho de conscientização simples a partir da semente. Crianças e adolescentes ressignificam, assim, sua relação com a natureza”.

Ana Cristina Diogo, fundadora da ONG Juriti.

O trabalho está sendo realizado às margens do riacho das Timbaúbas, em Juazeiro do Norte. “Estamos criando uma rede de monitoramento. A partir da experiência exitosa na Chapada do Araripe, estamos replicando em área urbana”.

A ideia é que as crianças passem a conversar em casa e entre elas. Aprendam que o pai da ideia foi um japonês: Masanobu Fukuoka, morto em 2008, que fez história com o cultivo por meio de “bombas” na Tailândia e em alguns países africanos. No século 21, os filhos de “fabianos” e “vitórias”, agora com nome e ideal, querem espalhar a novidade na mesma velocidade que semeiam as plantas.

Os próprios jovens, junto com estudantes universitários da região, criaram um programa na internet para promover conscientização em relação ao meio ambiente, o Vem me Ver. Com vinheta de abertura e entrevistas, as notícias são como bombas de cidadania e sonhos.










Partilha no campo


Ao passo que a moçada está firme no programa e na diversão das bombinhas em Juazeiro do Norte, agricultores experientes do lugar também têm conseguido entender que o trabalho cooperativo dá mais força para preservar os recursos e ir muito além de sobreviver. Uma organização não governamental chamada Sistema Integrado de Saneamento Rural (Sisar), sem fins financeiros, apoia produtores com manutenção e tratamento de água em associações organizadas em comunidades rurais, conforme explica a responsável pela capacitação, Marty Glaucy.

Marty Glaucy, do Sisar. Foto: Gustavo Gomes/EBC

“Depois da implementação dessas políticas de construção de sistemas de abastecimento de água em comunidades rurais, equipamentos sociais proporcionam que a população se fixe mais no campo. Com o associativismo entre os produtores, a população se envolve diretamente nas decisões”. O produtor rural Antonio Pureza, de 61 anos, que planta arroz, feijão e milho, garante que a união dos agricultores ajudou a encarar seis anos de seca ao dividir poços de água, por exemplo. Solidariedade e parceria, incluindo pesquisadores, gestores municipais e líderes comunitários, deixaram, mesmo na estiagem, a vida menos árida.




Fruto e cobertura morta


Outro exemplo também mora na terra de padre Cícero, Juazeiro do Norte (CE). O agricultor pernambucano Pedro Gonçalves da Silva, hoje com 65 anos, chegou ao Ceará como vaqueiro, mas resolveu aproveitar cursos gratuitos para trabalhar no campo. Criou 13 filhos ao apostar em hortas orgânicas. A família inteira mora no mesmo terreno, em casas de taipa que eles ergueram com os próprios braços.

Já pensou até em ir embora, tais foram os prolongados períodos de estiagem. No entanto, aprendeu a conviver com a falta de chuva a partir da reutilização da água e com coberturas de plantas mortas nos corredores que ajudam a manter a umidade nas hortas de arroz e milho. Com um detalhe: nada de veneno nas plantas.

A filha de Pedro, a professora e pedagoga Joana Ferreira Gonçalves, de 35 anos, em um turno, espalha a ideia de preservação. Na outra parte do dia, cuida da plantação. “A gente tem que diminuir o consumo e reutilizar a água, como a do banho. Nós passamos a plantar em pneus, usamos cobertura morta. Essa ideia de não usar agrotóxico protege todo o meio. Isso tudo começou com a minha mãe”, conta.

Dona Bia, que morreu há dois anos, foi a incentivadora de não usar agrotóxico e de preservar mais a água, uma visão mais completa do habitat. “Envolvemos a comunidade inteira e não só a família. Banimos veneno de vez. Fizemos o ecossistema acontecer. Atraímos a joaninha, por exemplo, que se alimenta do pulgão, praga da plantação. A gente conscientiza os vizinhos, as escolas. As crianças tocam muito os pais”, relata a professora.

“Tudo o que você plantar aqui dá, mesmo com pouca água”.

Joana Ferreira Gonçalves, professora e pedagoga.

Joana, inclusive, criou os próprios defensivos por meio de experimentações (usa de urina de vaca até pimenta) e inspirações em cursos oferecidos pela prefeitura e pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) na região.

Estratégia está também na horta do agricultor Francisco Salustiano da Silva, de 32 anos. Ele já colocou o pé na estrada atrás da chance de plantar uva. Saiu de Juazeiro, na Bahia, para a xará cearense Juazeiro do Norte onde implementou o que aprendeu. “Para a uva, não precisa de muita água. É uma fruta adaptada para o semiárido. Nós usamos a cobertura morta e molhamos duas vezes na semana, é o suficiente”. O resultado da plantação ele vende na cidade. Os agricultores da região trabalham com gotejamento e microaspersão de água para gastar menos, a exemplo do que ocorre em outras regiões e países de prolongadas estiagens.

Partindo para o sertão central do Ceará, estado com maior porção de semiárido do Brasil, o cenário cinza e de cactáceas faz com que moradores e produtores criem soluções diferentes. Cataventos para bombear a água com a força do vento, e não de um motor, fazem parte do cenário.

À beira da estrada, uma pequena hortinha suspensa no rumo de Quixeramobim. Francisco Silva, de 45 anos, e o filho, Antônio, de 20, plantam hortaliças em estrutura improvisada acima do chão com irrigação a partir de um poço de aluvião*. Com menos terra, a ideia é utilizar menos água. “Estamos há muito tempo sem uma chuva mais forte”, diz o pai. O cultivo é para a própria família. Os ganhos, por sua vez, vêm do trabalho em uma fazenda para criar gado.



Tilápias, frutas e sabor de vitória


Uma comunidade rural no meio do sertão seco e uma reviravolta arretada com sotaque francês. Na mesma Quixeramobim, no distrito de São José, mais de 25 quilômetros adentrando a zona rural da cidade, a vitória vem em gotas, em pingo d´água (aliás, nome do projeto original de uma parceria entre Universidade do Estado do Ceará e a de Tour, na França).

O nome Pingo d´Água, dado no final da década de 1990, já não faz tanto sentido. É simbólico. Pesquisadores europeus encontraram um terreno fértil em uma comunidade disposta a pesquisar, trabalhar e se transformar. No lugar, 1.200 famílias no Vale do Riacho da Forquilha viviam na linha de pobreza até descobrirem que podiam se autogerir, produzir frutas e se sustentar sem precisar sair do sertão.

Tudo com reaproveitamento da água. Uma das descobertas está na propriedade do agricultor Deusimar Oliveira, de 52 anos. A novidade ganhou forma quando ele passou a guardar água para as plantações de frutas dos produtores cooperados. Como a água ficava sem utilização, resolveu criar alguns peixes. Hoje são três tanques com seis mil tilápias.

A mesma água (com o produto orgânico gerado pela presença dos peixes) é levada para a plantação de frutas. “A água ficava ociosa. Foi uma grande descoberta porque as plantas absorvem. Não precisamos usar adubo químico. Não tenho mais só a renda da fruticultura, mas também a do peixe. Outros produtores estão seguindo a ideia e o projeto está ficando cada vez mais sustentável”, comemora o agricultor.

O mamão, por exemplo, rende 700 a 800 quilos por semana. Passou de oito para 100 caixas de um mês para o outro. Frutas regionais também têm vez na produção da comunidade. Tanto que os agricultores criaram uma fábrica de polpa.

Os produtos chegam a escolas públicas da cidade e de municípios vizinhos. A nutricionista Jaqueline Gomes, responsável pelo cardápio dos estudantes, vibra porque as polpas afastam as crianças de refrigerantes, além de estabelecer uma relação entre as famílias e os produtos da terra.

A socióloga Jeanne Facundo relata que o projeto rendeu frutos, literalmente, porque houve aproveitamento do potencial e dos saberes do povoado. “A comunidade, desde o começo, tinha espírito de cooperação, inclusive de enxadas”, pondera. “Foi um crescimento de consciência, uns precisam dos outros e se respeitam em suas diferenças”, complementa. Solidariedade, apoio e produção incessante rendem R$ 2 milhões para os 62 produtores da cooperativa.

O produtor Deusimar, que já chegou a sonhar em ir embora do sertão, hoje explica que ninguém quer mais ir para Fortaleza ou para outras regiões. “O sonho mudou”. A seca não os assusta mais. Água, fruta, peixe, lucro, dignidade, cidadania... os sabores vão muito além da plantação.

Um gosto de recomeço em meio ao árido sertão. Se Fabiano sonhava, marchava desorientado, agora a planície desamarela com a chegada do inverno ou das ideias criativas para conviver com a seca. Uma nova história poderia ser escrita e a família não precisaria mais fugir.

No litoral, 200 quilômetros depois, há quem também entenda que são as crianças que deveriam puxar o coro, explicar para os adultos o que parece ser lição simples. No Parque Estadual do Cocó, reserva ambiental de 1.600 hectares em Fortaleza, o projeto Chama Maré leva crianças a entender por que proteger aquela riqueza gigante, de lago, rio e mar tão de perto.

A criançada que mora nas comunidades das redondezas é convidada para passear, interagir, assistir a filmes e conversar. Nas periferias, também das grandes cidades, elas sabem o que significa a falta de água. “Eles são muito lembrados sobre a realidade do nosso sertão. Muitas das crianças ouviram falar de seca pelos pais ou avós, alguns que também vieram de longe”, diz o educador ambiental Ronaldo Santos.

Preservar, reutilizar, não poluir, distribuir, cuidar. Aprendizados que não estão só na escola. “Olha como é clarinha essa água”, disse o pequeno André, de 9 anos para os pais, enquanto admirava também saguis e flores. O cenário, que os filhos sem-nome de tantos fabianos não viram, não depende apenas da próxima chuva.

Glossário


Poço de aluvião: poço escavado no solo de aluvião, tipo de solo formado pela deposição de areia, cascalho ou lama que foram transportados ou arrastados pela água.

Gotejamento e microaspersão de água: são sistemas de irrigação simples e localizados, em que a água é aplicada em pequenas vazões diretamente nas raízes das plantas. O primeiro utiliza pedaços de mangueira com pequenos furos e gotejador na ponta, e acaba sendo o que mais economiza água. No segundo, microaspersores são utilizados para jogar água na plantação em gotas como chuva, em uma pequena área em forma de círculo.

Expediente

Gerência Executiva de Web / Agência Brasil


Reportagem: Luiz Cláudio Ferreira e Gustavo Gomes

Imagens: Tiago Moreira (agradecimento às imagens cedidas) e Gustavo Gomes/EBC.

Edição: Carolina Pimentel, Ligya Carvalho e Noelle Oliveira

Produção visual e implementação: Alexandre Krecke e Samara Prado