“Estavam no pátio de uma fazenda sem vida. O curral deserto, o chiqueiro das cabras arruinado e também deserto, a casa do vaqueiro fechada, tudo anunciava abandono. Certamente o gado se finara e os moradores tinham fugido.”
Confira o especialMoradora de uma comunidade rural chamada Riacho dos Porcos, a produtora Francisca Rodrigues Amorim, 39 anos, teve que mudar a previsão de plantação por causa da falta de chuvas. “Quando chove a gente planta milho e feijão. Mas como está na seca, a gente acaba plantando coisas menores como acerola”, diz.
Por Edgard Matsuki
Continuar lendoEm um município no qual até órgãos públicos sofrem com a escassez de água, a população de Boa Viagem (CE) é a principal atingida pela seca. Moradora de uma comunidade rural chamada Riacho dos Porcos, a produtora Francisca Rodrigues Amorim, 39 anos, teve que mudar a previsão de plantação por causa da falta de chuvas. “Quando chove a gente planta milho e feijão. Mas como está na seca, a gente acaba plantando coisas menores como acerola”, diz.
Francisca Rodrigues, moradora da comunidade rural Riacho dos Porcos (Ceará)
Ela vive com mais sete pessoas e a casa é abastecida semanalmente com água de caminhões-pipa. “Eles enchem a cisterna que foi colocada pelo governo e a gente tem que poupar água. Banho é só na garrafa”, ilustra. Mesmo poupando, nem sempre a água dá para a semana toda. “Agora, por exemplo, estamos há 15 dias sem receber água. Aí o jeito é pedir para os vizinhos”, afirma.
Mesmo considerando a situação de falta de água ruim, ela acredita que na cidade - onde vivem 32 mil dos 52 mil habitantes - é pior. “Lá as pessoas não têm cisternas para serem abastecidas. Aí são obrigadas e ir com o balde pegar água no chafariz. Elas carregam o que podem, mas de vez em quando dá briga”, diz.
A produtora é uma das brasileiras que vivem em um cenário de “seca excepcional” ou S4, como define a Agência Nacional de Águas (ANA), por intermédio de um sistema chamado Monitor das Secas. A excepcionalidade é caracterizada pela situação de emergência na cidade, falta de água sistemática em reservatórios, córregos e poços, perdas de plantações e seca generalizadas nas pastagens. Palavras e siglas não conseguem dar a real dimensão do sofrimento causado pela seca, mas são importantes no alerta para políticas públicas e necessidades de providências.
O diagnóstico é realizado desde 2014 pelo projeto Monitor das Secas, coordenado pela ANA. Mensalmente, um mapa é publicado mostrando quais áreas da Região Nordeste do país estão em algum nível de seca. Os estágios são S0 (Seca Fraca), S1 (Seca Moderada), S2 (Seca Grave), S3 (Seca Extrema) e S4 (Seca Excepcional) -- do índice mais fraco ao mais forte, respectivamente.
Entrando em seca: veranico de curto prazo diminuindo plantio, crescimento de culturas ou pastagem. Saindo de seca: alguns déficits hídricos prolongados, pastagens ou culturas não completamente recuperadas.
Alguns danos às culturas, pastagens; córregos, reservatórios ou poços com níveis baixos, algumas faltas de água em desenvolvimento ou iminentes; restrições voluntárias de uso de água solicitadas.
Perdas de cultura ou pastagens prováveis; escassez de água comuns; restrições de água impostas.
Grandes perdas de culturas / pastagem; escassez de água generalizada ou restrições
Perdas de cultura / pastagem excepcionais e generalizadas; escassez de água nos reservatórios, córregos e poços de água, criando situações de emergência.
Segundo os últimos dados disponíveis, referentes a novembro de 2017, partes dos estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, da Paraíba, de Pernambuco e da Bahia encontravam-se em situação de seca excepcional, a mais grave das classificações.
A principal função do Monitor das Secas é justamente alertar sobre quais são as regiões que estão passando por dificuldades com estiagens. “O nosso levantamento permite a obtenção de um retrato fiel das condições de secas para que ações governamentais sejam tomadas nas regiões para mitigar os efeitos”, explica Raul Fritz, supervisor da unidade de Tempo e Clima da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme), e um dos responsáveis pela validação de dados do projeto.
Fritz conta que o monitoramento tem a participação de várias instituições do Nordeste e não envolve um número simples. Segundo ele, há uma rede de pluviômetros que medem o nível de chuvas e observadores voluntários que fazem a mensuração em 500 locais do Nordeste. Com esses valores, são cruzados dados de imagens de satélites para formar o mapa Monitor das Secas. “Por fim, fazemos uma reunião mensal entre os estados e coordenador da ANA para validar o mapa final”, explica o supervisor.
Dentre os estados monitorados pelo projeto, o Ceará é um dos que mais sofrem com a estiagem na região: durante a maior parte do ano, 100% de seu território registram algum estágio de seca. Em outubro de 2017, 24% do estado estavam em estágio de seca excepcional (S4). De acordo com a Funceme, uma das cidades que mais sofrem com a estiagem é Boa Viagem, a cerca de 200 quilômetros de Fortaleza.
A Região Nordeste conta com o Monitor de Secas para acompanhar o ciclo de estiagem e melhorar a política e a gestão dos problemas decorrentes da escassez de chuva. O objetivo do Monitor é integrar o conhecimento técnico e científico já existente em diferentes instituições estaduais e federais e estabelecer diferentes graus de severidades da estiagem, permitindo acompanhar a evolução temporal e espacial. As informações são atualizadas mensalmente. O modelo foi baseado no Monitor de Secas dos Estados Unidos, desenvolvido pelo Centro Nacional de Mitigação de Secas dos EUA (NDMC).
O modelo de acompanhamento facilita a tradução das informações em ferramentas e produtos para serem utilizados por instituições tomadoras de decisão e indivíduos, de modo a fortalecer os mecanismos de monitoramento, previsão e alerta precoce. Além disso, é uma maneira de consolidar em um mesmo lugar e com uma mesma linguagem as diferentes informações sobre seca na região, que sempre tiveram espalhadas em órgãos diferentes, usando indicadores diversos. “Não havia muita possibilidade de integração das informações e compartilhamento dos dados”, recorda Ana Paula Fiorezi, superintendente adjunta de Operações e Eventos Críticos da Agência Nacional de Águas (ANA).
Na verdade, o que o equipamento faz é sistematizar o processo com uma metodologia bastante simples: usar indicadores de secas que são consagradas em nível mundial e classificar a seca em classes de severidade. “Vai de situação sem seca ou de seca moderada até seca excepcional. Uma vez por mês são elaborados mapas que permitem uma comparação da evolução da seca na região”, explica a representante da agência.
Com o Monitor, é possível saber quais regiões estão sendo mais afetadas e conseguir traçar uma tendência de evolução dessa seca. “A resposta à seca não depende só da severidade do evento naquele determinado momento, mas de um acumulado de históricos porque uma coisa é você ter uma seca severa que persistia dois meses e outra que persistia há alguns anos”, complementa Ana Paula Fioreze.
Ela explica ainda que quando o cidadão entra nesse mapa consegue visualizar as informações não somente por estados. “Não é uma instituição só que faz isso e privilegia a participação de todas as instituições estaduais. São três estados que fazem o revezamento na autoria: Bahia, com o Inema – Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado da Bahia; Pernambuco com a Apac – Agência Pernambucana de Águas e Clima e o Ceará com a Funceme – Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos”, ressalta. Eles usam dados que estão disponíveis em diferentes locais e consolidam as informações. Todos os estados participam de um processo de validação pegando os mapas e verificando com as pessoas que atuam no campo se aquilo corresponde a realidade ou não.
As informações sobre seca dificilmente são conseguidas em tempo real. A periodicidade que se consegue por enquanto é mensal. “Na verdade é um instrumento utilizado mais pelos órgãos gestores de recursos hídricos. Mas vários estados e o Ministério da Integração, também em algumas ações, usam para confirmar situação de emergência ou de calamidade e para se planejar para resposta, como por exemplo a carros-pipas ou outros socorros”, reforça a superintendente da ANA.
O sistema é um instrumento de monitoramento e não de prognóstico. Por enquanto, está centralizado no Nordeste. Desde janeiro de 2017, o equipamento passou a ser coordenado pela Agência Nacional de Águas e um dos objetivos é expandir esse monitoramento para todo o país em cinco anos.
Ana Paula Fioreze lembra que população pode acessar todos os mapas e os indicadores do Monitor, além dos resultados finais, que são sempre disponibilizados no 15º dia do mês subsequente. Há também o aplicativo, disponível para IOS e Android, onde podem ser baixados os indicadores que vêm sempre com uma narrativa do mês anterior. O endereço é: monitordesecas.ana.gov.br
Há seis anos vivendo em estiagem, os moradores de Boa Viagem sentem na pele o que é viver em uma região classificada como em seca excepcional. “Hoje, 100% dos moradores estão sem água nas torneiras e dependendo de caminhão-pipa”, afirma o coordenador da Defesa Civil do município, Ivandir Silva.
Silva conta que a situação tem se agravado nos últimos dois anos, desde que o açude Vieirão, responsável por abastecer a cidade, secou: “Estamos sem nada de água nas torneiras. Antes a situação era ruim, mas agora não chega nem de 15 em 15 dias como em outros anos. Escolas, postos de saúde, cadeias e delegacias ainda são abastecidas por caminhões-pipa da prefeitura, mas não sabemos até quando teremos recurso”, preocupa-se.
Em toda a cidade, há cerca de 70 chafarizes distribuídos pelos bairros. Eles são abastecidos por caminhões-pipa apenas duas vezes por semana, e servem como fonte de água dos moradores.
O professor Sandoval Vieira Júnior convive há três anos com a rotina de pegar água na caixa d'água. “Às 5h, as pessoas chegam, deixam os baldes e voltam para casa. Se forma uma fila de baldes. Às 7h, o [caminhão] pipa enche o chafariz e as pessoas vão pegar a água. Nós usamos essa água para banho, lavar roupa, casa. Para beber e cozinhar, a gente compra água”, conta o professor, que vive com os pais no centro da cidade.
Ivandir Silva, coordenador da Defesa Civil do município de Boa Viagem, Ceará
Ele destaca que o período sem água nas torneiras modificou os hábitos na cidade. “Criou-se uma consciência com a situação. Hoje a água é reutilizada, por exemplo, na descarga. Ninguém pega mais água do que pode”, conta. O professor também diz que a falta de água impactou na construção civil: “Como é proibido usar água pública em construções e reformas, o emprego para pedreiros diminuiu muito na cidade”.
Na rua em que a mãe do professor vai pegar água, não acontecem disputas na hora da distribuição. Porém, ele relata que brigas por água são comuns em outros lugares. “A organização depende muito da educação das pessoas. No chafariz que fica perto da minha casa todo mundo se conhece e se dá bem, mas nem em todos é assim. No [chafariz] atrás da minha casa, teve briga semana passada. Volta e meia ‘voa’ um balde na cabeça”, relata.
A seca excepcional não atinge apenas regiões que tradicionalmente sofrem com a falta de chuvas. No final de 2016, o Oeste do Maranhão chegou ao nível S4. Pelo fato de a estiagem ter ocorrido em um período mais curto do que, por exemplo, no Ceará, as consequências atingiram somente a área rural; mais exatamente a produção pecuária.
Oscar Fernando Oliveira, secretário de agricultura de Açailândia, Maranhão.
De acordo com o secretário de Agricultura do município, Oscar Fernando Oliveira, a seca do final de 2016 prejudicou, principalmente, as pastagens da região. Com isso, o gado não engordou e a produção de leite despencou. “Normalmente, produzimos 180 mil litros por dia. Ano passado, foi 120 mil litros/dia. Isso impactou o comércio e a economia local. Teve gente que teve que largar o emprego”, afirma.
Oliveira afirma que a seca pegou os produtores de surpresa. “Não estávamos preparados. Vivemos a pior situação em 40 anos em relação à falta de chuvas. Depois do ano passado, fizemos diferente neste ano: trabalhamos para estocar pasto e ração”, conta. De acordo com o secretário, a prevenção após o susto fez com que os produtores não sofressem o impacto com a seca.
O produtor de gado Joaquim Ramos, que é membro do Sindicato dos Produtores Rurais de Açailândia (Sinpra), conseguiu evitar grandes perdas na produção por se prevenir contra a seca. “A maioria que perde rebanho, e isso aconteceu aqui por causa da má mineralização [reposição de minerais na alimentação]. Eu não tenho perdido muito porque faço isso corretamente”, afirma.
Um dia... Sim, quando as secas desaparecessem e tudo andasse direito. .. Seria que as secas iriam desaparecer e tudo andar certo? Não sabia.Trecho do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos
Veja soluções sertanejas para a convivência com a seca
ConfiraReportagem: Edgard Matsuki
Edição: Ana Elisa Santana, Carolina Pimentel e Noelle Oliveira
Produção visual e implementação: Alexandre Krecke e Marcelo Nogueira
Infografia: Daniel Dresch