Trecho do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos
Continuar lendoPor Fabíola Sinimbú e Edgard Matsuki
Episódios do passado (como a grande seca de 1877) e problemas atuais (como os causados pela seca excepcional) mostram que a Região Nordeste sempre esteve ligada a imagem de estiagens longas e prolongadas.Porém, duas grandes crises hídricas recentes mostram que nenhuma região do país está livre de sofrer com o desabastecimento: a ocorrida na região metropolitana de São Paulo entre 2014 e 2016 e a do Distrito Federal, que perdura desde o início de 2017. A capital do país, inclusive, vive regime de racionamento com revezamento entre as regiões administrativas.
Alguns pontos em comum estão entre os motivos para o problema com falta de água nas duas metrópoles: crescimento populacional desordenado, desperdício de água e falta de investimentos em políticas para prevenção de secas. Em ambos os casos, o estopim para o início da crise hídrica foi o mesmo: longos períodos sem chuva.
O problema do desabastecimento na capital paulista começou com a chegada do fenômeno El Niño na América do Sul em 2014. “A maior seca do século passado tinha sido em 1953. Em 2014, choveu a metade de 1953”, afirmou o governador, Geraldo Alckmin, durante fala no 8º Fórum Mundial da Água. Quatro ciclos de chuvas irregulares, com longas estiagens fizeram com que o nível do Sistema Cantareira, que abastece a região metropolitana de São Paulo, despencasse.
No início de janeiro de 2014, o nível do Cantareira, até então responsável por 47% do abastecimento da cidade (quase 9 milhões de pessoas), estava em 26,6% da capacidade (nível considerado baixo). Em 16 de maio de 2014, o nível ficou abaixo de 10% da capacidade e a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) começou a utilizar a reserva técnica de água (chamada de volume morto) para o abastecimento.
Naquele ano, a população passou a sentir os reflexos da crise hídrica. As consequências chegaram a 14 milhões de pessoas na Grande São Paulo e 62 cidades do interior. Na capital, o problema chegou às torneiras até de bairros considerados nobres. A professora Letícia Ribeiro, de 29 anos, que dá aula de português para refugiados, mora em uma casa no bairro de Pompeia e experimentou essa nova sensação da irregularidade no abastecimento. "Ficávamos até 12 horas sem água. O pior é saber que esse problema poderia ter sido evitado. Quem mora em apartamento acabava sentindo menos o problema em função das reservas na caixa d´água. Foram dois anos assim". A professora compreende também que a situação da família dela era, inclusive, privilegiada em relação a outros bairros. "Sabemos que, em regiões periféricas, as pessoas ficavam muito mais tempo sem abastecimento. É a perda da dignidade", lamenta.
Professor de engenharia hídrica da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, Antônio Eduardo Giansante, explica que o volume morto nada mais é do que a água “que fica abaixo do nível de captação do sistema”. No caso do Cantareira, esse volume seguia o curso do rio. “Em função da crise hídrica, além das estruturas hidráulicas tradicionais, foi necessário implantar um sistema de captação por flutuantes, que é bem conhecido e usado na Região Amazônica. Nesse caso, a captação passa a acompanhar o nível do rio”, detalha.
A redução do volume de água gerou um alerta vermelho. A Sabesp, companhia de água do estado, decidiu reduzir a pressão da água que chegava às torneiras. Com a medida, moradores de alguns bairros começaram a ficar sem água. Em outubro de 2014, a então presidente da Sabesp, Dilma Pena, admitiu que a redução de pressão teve como consequência a falta d'água em locais altos ou afastados.
Além da redução de pressão, outras medidas buscaram minimizar os efeitos da crise (que só chegaria ao fim em 2016, com a volta das chuvas em São Paulo). Uma das principais foi a tentativa de diminuir o desperdício de água. “Com o uso racional, conseguimos uma economia de 15% que se manteve após a crise hídrica. Também fizemos uma parceria com o governo japonês para a substituição de tubulações que evitou a perda física de água”, diz Alckmin.
No início de 2015, o Sistema Cantareira já contribuía 56% a menos para o abastecimento da metrópole paulista. Foram antecipadas obras com o objetivo de aumentar a capacidade de produção das represas Billings, Guarapiranga e Sistema Alto Tietê e, também, para interligar os sistemas para diminuir a dependência da região em relação ao Sistema Cantareira.
No final de 2015, o volume voltou a subir acima da reserva técnica. Em março de 2016, quando o reservatório com capacidade para armazenar 1 trilhão de litros de água chegou a 58% da capacidade, o estado de São Paulo anunciou o fim da crise hídrica. No entanto, especialistas preferiram esperar o aumento do volume de chuvas para considerar uma situação de segurança hídrica, o que só aconteceu em 2017.
Após o fim da crise hídrica, São Paulo segue em busca de medidas para que a cidade não sofra mais com o risco de desabastecimento. Uma delas é a ligação do Sistema Cantareira com a Bacia do Rio Parnaíba do Sul. De acordo com o governo, a obra (que tem previsão de ser concluída em 2020) vai aumentar a capacidade de reserva de água. “Com o aquecimento global, chove muito ou chove muito pouco. Temos que estar preparados para isso”, afirmou Alckmin.
Enquanto as obras não estão prontas e o governo tenta evitar o desperdício de água com a troca de tubulações e medidas educativas, especialistas dizem que São Paulo ainda corre sérios riscos de passar por uma nova crise hídrica. Dados divulgados em janeiro pelo Consórcio Intermunicipal das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (Consórcio PCJ) apontam que a situação atual do Sistema Cantareira é semelhante a do ano anterior da crise hídrica. “Quando adentramos de 2013 a 2014, o Sistema Cantareira estava com 30% de sua capacidade. De 2017 para 2018, estamos com aproximadamente 40%”, disse Francisco Carlos Castro Lahóz, coordenador de Projeto do PCJ à Agência Brasil.
Para o professor Antônio Eduardo Giansante, o sistema de abastecimento de São Paulo aumentou consideravelmente sua segurança hídrica mas, apenas isso, não garante que não hajam outras crises. Ele pondera que é necessário que a população continue economizando água e que os órgãos gestores se planejem em torno de ações para combater os efeitos das mudanças climáticas. “O exemplo de São Paulo serve de apoio para o restante do país entender que precisamos estar mais bem preparados”, conclui.
Durante palestra no Fórum Mundial da Água, o presidente da Hungria, János Áder alertou que São Paulo é uma das cidades do mundo candidatas a um “colapso hídrico”, como o que ocorre no momento na Cidade do Cabo (África do Sul), caso as medidas necessárias não sejam devidamente implementadas. “Se nada for feito, a cidade do Cabo será a primeira a não ter água nas torneiras. Qual será a segunda? Jacarta, Cidade do México, São Paulo?”, questionou, citando a metrópole brasileira entre as opções de resposta.
Enquanto especialistas acreditam que São Paulo ainda corre riscos de passar por uma crise hídrica, problemas de abastecimento são realidade no Distrito Federal. Brasília e as regiões administrativas vizinhas passam por um rodízio no abastecimento de água desde 16 de janeiro de 2017. Cada região do DF tem ficado um dia da semana sem água. A medida foi tomada em consequência da queda dos níveis dos sistemas Descoberto - que abastece dois terços do DF -, e do de Santa Maria/Torto, responsável por abastecer a área central e algumas outras regiões da capital.
Durante o 8º Fórum Mundial da Água, o governador do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg, elencou os principais motivos que resultaram na crise hídrica: a falta de investimentos de governos anteriores, o crescimento desordenado da região e a falta de chuvas no segundo semestre de 2016.
“Brasília é uma cidade muito recente, fundada em 1960, mas nós somos uma das maiores metrópoles do Brasil. Temos 3 milhões de habitantes no Distrito Federal e 1 milhão de habitantes no Entorno que vivem em função de Brasília. O crescimento foi fruto de uma ocupação desordenada do solo. Esse crescimento onerou as barragens, que não resistiram a três anos de estiagem”, disse Rollemberg.
O engenheiro especialista em saneamento e meio ambiente Adauto Santos, consultor do Ministério das Cidades e do Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), afirma que a população não precisaria ser diretamente afetada por uma crise hídrica se houvesse planejamento. Segundo ele, é possível se antecipar aos períodos de estiagem por meio de um monitoramento dos índices pluviométricos. “A primeira coisa importante para um uso racional de recursos hídricos é você fazer os planos de gerenciamento integrado. É nos estudos que se define a quantidade de água que se tem, quem pode usá-la, quanto pode ser usado, quais as prioridades de uso, bem como onde se criam os pactos entre os envolvidos para conhecer os riscos de cada uso”, explica.
No Distrito Federal, o alerta por falta d´água veio em setembro de 2016. Já no mês seguinte, a tarifa de contingência começou a compor a fatura de água do consumidor brasiliense, quando a Barragem do Descoberto chegou a 25% de seu volume útil. Até então, o sistema era responsável pelo abastecimento de 60% da população.
Em novembro do mesmo ano, moradores das regiões administrativas do DF já sentiam nas torneiras de casa a queda da pressão de água. A decisão partiu da Companhia de Saneamento Ambiental do DF (Caesb) como uma alternativa paliativa, a fim de que o racionamento virasse uma realidade na capital do país.
A contenção não foi suficiente e, em janeiro de 2017, a maior parte dos mais de três milhões de habitantes do Distrito Federal passou a conviver, na prática, com o rodízio de interrupção do fornecimento de água distribuída a partir do reservatório do Descoberto.
A medida teve início antes mesmo dos reservatórios atingirem níveis críticos, e foi justificada como uma forma de assegurar a capacidade hídrica para o próximo período de estiagem. Nos meses seguintes, novas regiões foram incluídas no rodízio, inclusive áreas abastecidas por outros reservatórios, como o de Santa Maria.
Locais que recebem água por meio de sistemas menores de abastecimento - como Brazlândia, Sobradinho, Planaltina - também sofreram com a escassez de recursos hídricos no DF. É o caso do Vale do Amanhecer, na cidade de Planaltina, distante 46 quilômetros do centro de Brasília. Lá, o abastecimento é feito por meio da captação das águas do Córrego Quinze, diferente do restante de Planaltina, abastecida pela Bacia do Pipiripau.
Certos de que estariam livres do corte de água, os moradores do Vale foram surpreendidos com a chegada do desabastecimento A produtora de eventos Elke Pimentel conta que por dez dias do mês de novembro não viu uma única gota de água escorrer pela torneira. Por ser uma comunidade que cresceu em função do surgimento de uma religião - o Vale do Amanhecer atrai, todos os anos, milhares de fiéis e turistas curiosos por desvendar os mistérios da doutrina espiritualista criada por Neiva Chaves Zelaya - o comércio local atende não somente os cerca de 13 mil moradores da vila (dados de 2013 da Codeplan), mas também ao fluxo turístico.
É o caso da pousada da empresária Débora Fernandes, que também não esperava a suspensão do fornecimento de água. “Nós estávamos com a capacidade máxima e de repente as pessoas foram abrir a torneira e não tinha água. Alguns hóspedes chegaram a ir embora, não compreenderam, porque as pessoas vêm em busca de um conforto mínimo: água e luz”, diz.
Na avaliação do professor do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília (UnB), Sérgio Koide, a situação do Distrito Federal chegou a um estado crítico por causa de uma decisão, em 1998, do governo do DF. O professor explica que, na ocasião, optou-se por concentrar os investimentos na construção de um novo sistema para ser a principal fonte de abastecimento da região: Corumbá IV.
O sistema garantiria o abastecimento por mais um século, mas era necessário que começasse a funcionar até 2010 para que a demanda não chegasse ao mesmo volume da oferta. “Como as obras de Corumbá IV não andaram, isso acabou provocando a defasagem completa do sistema”, pondera.
O consultor Adauto Santos avalia que, além de não contar com o novo sistema, os que estão em operação no DF permanecem sem manutenções corretivas e preventivas, o que avalia como mais um fator de redução de eficiência do abastecimento. “A Caesb passou o índice de perdas de 20% em 1995 para 35% em 2015. Há um problema de operacionalização do sistema, de falta de investimento em programas de combate ao desperdício de água e de perdas físicas e aparentes”, pontua.
O presidente da Caesb, Maurício Luduvice, reconhece que as perdas de água são um problema grave no DF, mas defende que os números estão sob controle. “Apesar de termos uma perda de 35%, que é considerada boa em um nível nacional, esse percentual não nos deixa satisfeitos, queremos baixá-lo”, destaca. “Ao longo desses últimos três anos nós estamos trabalhando em duas frentes: no aumento da capacidade de produção, colocando água nova no sistema, mas também investindo muito na distribuição, reduzindo as perdas”, complementa.
Para evitar futuras crises hídricas no Distrito Federal, o novo sistema de armazenamento, o de Corumbá, segue em construção. O sistema deve abastecer, prioritariamente, cidades do Entorno e, em casos de emergência, também será utilizado para Brasília.
A construção do Sistema Corumbá tem um orçamento de R$ 540 milhões, divididos entre Distrito Federal e Goiás. A previsão é que depois de concluído, o novo sistema distribua no DF metade dos 2,8 mil litros de água por segundo que será capaz de produzir. A outra metade será entregue para abastecer cidades goianas. A Caesb prevê que os testes de Corumbá tenham início em dezembro de 2018 e que durem três meses. Em seguida, uma nova fase da obra possibilitará a ampliação da captação para 5,6 mil litros por segundo.
Enquanto Corumbá não fica pronto, no final de junho de 2017, foi realizada a interligação dos dois principais sistemas de abastecimento do DF, o de Santa Maria-Torto e Descoberto. Segundo a Caesb, a medida foi viabilizada por meio dos R$ 24,1 milhões provenientes da tarifa de contingência, que aumentou a conta de água e esgoto em 20% no período entre outubro de 2016 a junho de 2017.
Além disso, em outubro de 2017, o Subsistema do Lago Norte, passou a ofertar mais 700 litros de água por segundo, captadas do Lago Paranoá. A obra custou R$ 42 milhões e foi financiada pelo governo federal. A construção do Subsistema Bananal, por sua vez, também terminou no mesmo mês e significou mais 726 litros de água por segundo, com um custo de R$ 20 milhões provenientes de empréstimo feito por meio do Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste, do Banco do Brasil.
As chuvas de 2018 e a economia ocasionada pelo racionamento de água garantiram que a Barragem do Descoberto (que no ápice da crise esteve com nível de 5,3% da capacidade total) chegasse a cerca de 70% da capacidade. De acordo com o governo do DF, em maio será possível ter uma previsão de quando o racionamento chegará ao fim.
O professor de Engenharia Hídrica da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Antônio Eduardo Giansante, avalia que as medidas de aumento da segurança hídrica acabam ocorrendo após as crises. “Nós especialistas trabalhamos procurando reduzir o risco; mas embora haja ferramentas estatísticas, não é possível ser preciso quando se fala em fenômenos extremos causados pela irregularidade climática”, destaca.
Para Giansante, é possível avançar em soluções que aumentem essa segurança hídrica mas, para tanto, é necessária a interlocução com a população. “Cabe também a nós cidadãos, usuários, saber qual risco que é aceitável, qual o custo envolvido nisso e se a sociedade vai querer arcar com esse custo”, conclui.
Reportagem: Fabíola Sinimbú e Edgard Matsuki
* Colaborou: Luiz Cláudio Ferreira
Edição: Carolina Pimentel, Ligya Carvalho, Luiz Cláudio Ferreira, Nathália Mendes e Noelle Oliveira
Design, infografia e implementação: Alexandre Krecke, Marcelo Nogueira e Samara Prado
Imagens: Jorge Monforte
Imagem Capa: Marcelo Camargo/Agência Brasil