Chico, Mangue e Afrociberdelia

Dois mil e dezesseis marca a celebração da vida e a obra do músico pernambucano Chico Science, que faria 50 anos em 13 de março. O ano, na verdade, reúne uma confluência de datas marcantes que mudaram a música nacional. Em 2016, completam 20 anos do lançamento do álbum Afrociberdelia, de Chico Science e Nação Zumbi e 25 anos do manifesto intitulado “Caranguejos com Cérebro”, que marca o início do Movimento Mangue Beat. O disco lançado por Chico em vida junto à Nação Zumbi, conquistou disco de ouro (100 mil cópias vendidas) logo após sua morte em um acidente de carro em fevereiro de 1997.

“Em meados de 91 começou a ser gerado/articulado em vários pontos da cidade um organismo/núcleo de pesquisa e criação de ideias pop. O objetivo é engendrar um “circuito energético” capaz de conectar alegoricamente as boas vibrações do mangue com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama. Ou um caranguejo remixando ANTHENA do Kraftwek no computador”, diz um trecho do manifesto.

Science teve uma carreira meteórica. Em menos de três anos, gravou dois discos e fez duas turnês mundiais: a primeira passando por cinco países, a segunda por sete países da Europa, mais os Estados Unidos. Suas músicas são, ainda hoje, referência para muitos grupos musicais e estudiosos da cultura brasileira.

Homenagens ao cinquentenário de Chico Science começaram no último Carnaval: diversos blocos lembraram o “mangue boy”, entre eles o Galo da Madrugada, maior bloco de Pernambuco e considerado o maior do mundo pelo Guinness Book.

Ainda durante a folia, a filha de Science, Lula Lira, participou pela primeira vez de uma apresentação da Nação Zumbi, no Marco Zero do Recife. Ela abriu o show cantando a música “Monólogo ao pé do ouvido”, do disco “Da Lama ao Caos” (primeiro da banda, de 1994); além de improvisar homenagens a Chico e ao movimento Ocupe Estelita.

Para celebrar esse ano, conheça mais sobre a vida e obra de Chico Science e o seu Afroceberdelia:

Foto: Gil Vicente

Do mangue ao mundo, saiba quem foi Chico Science

Chico com os pais, Dona Rita e Seu Chico / Foto: Acervo Família França Início da carreira de Chico nos anos 1980 / Foto: Acervo Família França

Francisco de Assis França Caldas Brandão nasceu no Recife, em 13 de março de 1966, e morou boa parte de sua vida em Olinda. Seus pais, Francisco e Rita, são de Surubim, interior de Pernambuco.

“Venho de uma família bem misturada de índios, caboclos e negros, que migraram para a cidade para tentar a vida”, contou Chico no programa Ensaio, gravado pela TV Cultura em 1996. Clique abaixo para assistir:

Caçula de quatro filhos, o gosto musical de Chico quando adolescente distoava dos irmãos mais velhos, que gostavam de MPB. A antena do músico estava voltada para a música negra dos EUA, a chamada black music. James Brown, Sugar Hill Gang, Kurtis Blow, Afrika Bambaata e Grand Master Flash eram suas principais influências quando entrou na Legião Hip Hop, um dos principais grupos de break do Grande Recife, em 1984.

“Ele sempre trazia coisas que eram completamente novidade no nosso mundo musical. Apesar de ter bebido dessas fontes porque a gente ouvia muita música”, conta a irmã Goretti, quatro anos mais velha que Chico. Mesmo sem ter estudado nenhum instrumento, Chico anotava em seus cadernos pessoais todo o arranjo que ele pensava para as músicas.

“A gente tem coisas escritas dele que eram as ‘partituras’, onde ele fala o som que aquilo tinha, o som que aquilo ia produzir”

Em 1987, veio o primeiro projeto musical de Chico com a banda Orla Orbe, da qual faziam parte dois membros da futura Nação Zumbi: Lúcio Maia e Jorge du Peixe, todos moradores de Candeiras, bairro de Jaboatão dos Guararapes, na região metropolitana do Recife. Os ensaios aconteciam na garagem da casa de Maia.

Chico durante ensaio com a banda Loustal / Foto: Gil Vicente

Em fevereiro de 1988, a banda fez sua primeira apresentação no Espaço Arte Viva, no bairro de Boa Viagem.

Esta vinheta, cedida por DJ Elcy, Chico anuncia na rádio uma apresentação da Orla Orbe em uma festa de Hip Hop na casa Misty.

Também por esse período, alguns estudantes do curso de comunicação da Universidade Federal de Pernambucano (UFPE) criaram o programa Décadas (inspirados na música Decades, do Joy Division). Faziam parte Fred Monteiro, o Fred 04, que já estava à frente da banda Mundo Livre S/A criada em 1984, Renato Lins e o webdesigner José Carlos Arcoverde, apelidado de Herr Doktor Mabuse (H.D Mabuse).

Chico Science, H.D. Mabuse e Jorge Du Peixe / Foto: Acervo Família França
O programa tocava de tudo: de hip hop ao tecnopop, passando ainda pelo rock da época. New Order e Kraftwerk eram alguns dos sonos que se ouvia na rádio. Transmitido aos domingos, o programa não tinha uma grande audiência. Um dia, um dos ouvintes resolveu fazer uma visita.

“Eu tava lá e chegou Chico com um disco do Afrika Bambaata embaixo do braço e comentando que acompanhava o programa. Ele morava em Rio Doce, eu morava em Casa Caiada, que é um bairro vizinho, conheci a figura e a gente ficou amigo”, lembra Mabuse.

Da amizade surgiu um novo projeto musical, o “Bom Tom Rádio”, que além de Mabuse e Chico tinha a participação de Jorge du Peixe. A estrutura de gravação na casa de Mabuse consistia em um microsistem com karaokê e um computador MSX que ele comprou usado.

“Era um estúdio improvisado em casa, que era pra ser um laboratório de diversão, de experimentação”

Foi com o “Bom Tom Rádio” que Chico gravou pela primeira vez a música “A Cidade”, que entraria no primeiro disco de Chico Science e Nação Zumbi, um dos clássicos do grupo que reflete sobre o crescimento urbano e as desigualdades sociais. Outra música que surgiu dessa época é “O encontro de Isaac Asimov Com Santos Dummont no Céu”, que viria a ser gravada em “Afrociberdelia”.

Ouça a versão da música A Cidade gravada pelo Bom Tom Rádio.

Foi Mabuse quem apresentou a turma de Candeias (Chico, Lucio, Dengue e Jorge) à turma do Mundo Livre S.A, que morava no bairro de Rio Doce em Olinda (Renato L e Fred 04).

“Eu já conhecia Renato e Fred por um amigo em comum e teve um momento que era óbvio que a gente ia se juntar: os interesses eram os mesmos, e mais que os interesses, as intenções eram as mesmas”

Com o fim da Orla Orbe, Chico começou o projeto da banda Loustal no final de 1989. Homenagem ao quadrinista francês Jacques de Loustal, a banda formada por Chico, Lúcio Maia, Alexandre Dengue e Vinícius se inspirou no rock dos aos 1960, misturado com as influências de funk, soul e hip hop. Dessa época, surgiram as primeiras versões de “Etnia” e “Manguetown”, que viriam a ser gravadas em “Afrociberdelia”.

“Nós somos uma antena e vamos tocar aqui sempre, mesmo se não conseguirmos gravar um disco, não conseguirmos fazer nada, nós vamos estar o tempo todo nos divertindo, isso é o que interessa. Vamos nos divertir o tempo todo. Divirtam-se. Festejem”

Em 1991, Chico, que ainda era conhecido por Francisco França ou Chico Vulgo, tentou contato com a banda Ira! para impulsionar a sua entao carreira. Os paulistanos fariam um show em Recife na mesma data em que Chico tinha um show marcado em Olinda, junto com o Mundo Livre S.A. Em meados de 1980, Chico já havia tentado contato com o vocalista da banda para conseguir apoio nas produções de hip hop como Mc Chico Vulgo, um vez que Nasi tinha produzido os rappers Thaíde e Dj Hum. Chico conseguiu acesso aos camarins e convidou todos para assistirem ao show de sua banda, a Loustal.

O empresário Paulo André havia morado três anos em Los Angeles, onde viu surgir uma geração de bandas, e quando voltou para Recife abriu uma loja de discos, a Rock’n Press. Ele já havia visto Chico algumas vezes em meio à boemia recifense, mas naquele dia foi a primeira vez que assistiu a uma apresentação. Ele viria a ser empresário e grande amigo de Chico.

“Para as bandas daqui era som tosco, lugar tosco, instrumentos toscos, tudo era tosco. Então a musicalidade não me chamou a atenção mas os trejeitos do Chico no palco sim”

Chico trabalhava na Emprel, Empresa Municipal de Informática da Prefeitura do Recife, quando conheceu Gilmar Bola 8. Ele tocava percussão no grupo Lamento Negro, projeto de resgate da cultura africana que desenvolvia o Daruê Malungo, trabalho de educação popular com a população carente em Peixinhos, bairro periférico do Recife.

Em 1996, durante o programa Ensaio, Chico fala sobre esse encontro.

Chico Science no Daruê Malungo / Foto: Gil Vicente

Além de Orla Orbe e Loustal, Chico Science, já com o nome artístico pelo qual seria conhecido, começou a tocar também com o Lamento Negro, se apresentando inicialmente como Chico Science e Lamento Negro, misturando suas referências de black music com os ritmos regionais nordestinos. Ao conhecerem a nova sonoridade, Lúcio Maia, Jorge du Peixe e Dengue também aderiram ao projeto que contava com os percussionistas Gira, Gilmar e Toca Ogam.

Foto: Gil Vicente / Fanzine
O primeiro show da Lamento Negro aconteceu em junho de 1991. Na divulgação do evento, aparece pela primeira vez o batismo à sonoridade apresentada pelo grupo: mangue, em uma entrevista concedida por Chico ao Jornal do Comércio.

“O ritmo chama-se Mangue. É uma mistura de samba-reggae, rap, raggamuffin e embolada. O nome é dado em homenagem ao Daruê Malungo (que em iorubá significa companheiro de luta). Um núcleo de apoio à criança e à comunidade carente de Chão de Estrelas”. disse Chico ao veículo.

“É nossa responsabilidade resgatar os ritmos da região e incrementá-los, junto com a visão mundial que se tem. Eu fui além”, ressaltou na nota “Sons negros no Espaço Oásis”, publicada no jornal. A discotecagem do show ficou a cargo de Renato Lins e Mabuse. “Pense o Chico Science e Nação Zumbi que a gente conhece com o dobro de pessoas, mais percussão. Tinha sempre um DJ, um trompete, foi um show absurdo”, lembra Mabuse.

Movimento Mangue: Fred 04 (Mundo Livre S.A.) e Chico Science e Nação Zumbi. Foto: Gil Vicente
Considerado o manifesto do movimento manguebeat - que era inicialmente grafado como manguebit, em referência aos bits dos computadores -, o texto foi elaborado para divulgar a ida das bandas Chico Science e Nação Zumbi e Mundo Livre S.A. a São Paulo.

“Era um release, mas quando saiu tinha a maior cara de manifesto, e acabou ganhando uma proproção muito interessante”

Foto: Beco Dranoff / Acervo Paulo André
Foto: Maria F. Moreno / Acervo Paulo André
Foto: Maria F. Moreno / Acervo Paulo André
Foto: Maria F. Moreno / Acervo Paulo André
Foto: Maria F. Moreno / Acervo Paulo André
Foto: Gil Vicente / Fanzine
Foto: Gil Vicente
Foto: Gil Vicente
Foto: Gil Vicente

Carreira Internacional

Foto: Maria F. Moreno / Acervo Paulo André

Após o lançamento do disco “Da Lama ao Caos”, Chico Science e Nação Zumbi saíram em sua primeira turnê internacional. Batizada de “From Mud to Chaos” (tradução em inglês do título do disco), a viagem durou quase dois meses e passou por EUA, Bélgica, Alemanha, Suiça e Holanda. Neste período, a banda fez apresentações históricas em locais e eventos como o Central Park Summer Stade e o Montreaux Jazz Festival.

Contraditoriamente, o sucesso das apresentações internacionais veio antes do reconhecimento no Brasil. O primeiro disco não era tocado nas rádios brasileiras e teve uma baixa vendagem no primeiro ano.

“A gente caiu na ignorância e até hoje Chico Science e Nação Zumbi são ignorados pelas rádios brasileiras; são raras as rádios que tocam”

Com a baixa aceitação, o empresário decidiu tentar outros meios e conseguiu um guia de festivais, casas noturnas e programas de rádio voltados para a “world music”. Ele reuniu, então, reportagens de jornais brasileiros sobre a banda e algumas matérias internacionais; fez cópias e enviou para os endereços do guia junto a um exemplar do disco.

Em setembro de 1994, cinco meses depois do lançamento de “Da lama ao caos”, começaram a chegar via fax convites para apresentações no exterior. A excursão começou oito meses depois, e durou até meados de agosto do mesmo ano. Além dos festivais, a banda tocou em casas noturnas como o lendário CBGB em Nova Iorque, que foi palco para muitas bandas punks nos anos 1970 e 1980.

Jorge du Peixe e Chico Science em Nova York en 1995 / Foto: Maria F. Moreno / Acervo Paulo André

Ouça trecho de entrevista gravada em 1996 para o programa Toda Música, conduzido por Vilmar Bittencourt na Rádio Cultura de São Paulo, em que Chico Science lembra da primeira turnê da banda:

“Nós fizemos numa van que a gente chamava de vão [risos]. Rodamos muitos lugares; entramos no meio de tudo; saímos Europa a fora”

Na mesma entrevista, Chico fala sobre a repercussão da banda no exterior. Ele considera que a ideia de divulgar o trabalho fora do país já estava presente na figura da “parabólica fincada na lama”, presente no manifesto mangue, cuja divulgação em outros países fortaleceu a banda.

“foi justamente a ideia de base de pensar, poxa estamos num lugar como qualquer outro do mundo, vamos fazer por onde as coisas aconteçam, vamos fazer a nossa ideia vingar"

Nasce o Afrociberdelia

A viagem internacional ampliou o universo de referências musicais de Science, seja pelas bandas com quem compartilhou palco nos festivais, seja pelos discos que adquiriu no exterior. Na volta ao Brasil, a mistura influenciou o segundo disco da banda, “Afrociberdelia”.

Paulo André considera o álbum mais diverso e bem resolvido do que o anterior.

“É bem mais diverso na sonoridade; acho que tem uma memória artística. O ‘Da Lama ao Caos’ é um pouco mais cru que o ‘Afrociberdelia’”

O conceito de Afrociberdelia foi desenvolvido por Bráulio Tavares em um texto do encarte do disco. Tavares havia conhecido Chico Science meses antes, por meio do músico Lenine. “Ele me ligou uma noite dizendo que queria que eu botasse uma voz no disco. Eu falei que não gosto muito da minha voz e preferia fazer um texto. Ele concordou”, contou Tavares ao Portal EBC.

“Ele desenvolveu um texto de ficção que vira também uma brincadeira. Acho que todo esse conceito está dentro da nossa musicalidade”

Na entrevista à Rádio Cultura em 1996, Chico Science define que o “Afrociberdelia” abriu mais possibilidades para a banda trabalhar a música e o conceito que já estavam presentes no álbum anterior. O nome já aparecia em “Côco Dub - (Afrociberdelia)”, última faixa do primeiro disco.

“Nós já botamos ali a continuação de ‘Da Lama ao Caos’, um disco que mostra o quanto você pode entender e trabalhar mais os elementos da música pop brasileira”

Confira o texto que define o título do disco:


AFROCIBERDELIA (de África + Cibernética + Psicodelismo) -- s.f. -- A arte de cartografar a Memória Prima genética (o que no século XX era chamado “o inconsciente coletivo”) através de estímulos eletroquímicos, automatismos verbais e intensa movimentação corporal ao som de música binária.

Praticada informalmente por tribos de jovens urbanos durante a segunda metade do século XX, somente a partir de 2030 foi oficialmente aceita como disciplina científica, juntamente com a Telepatia, a Patafísica e a Psicanálise.

Para a teoria afrociberdélica, a Humanidade é um vírus benigno no software da Natureza, e pode ser comparada a uma Árvore cujas raízes são os códigos do DNA humano (que tiveram origem na África), cujos galhos são as ramificações digitais-informáticas-eletrônicas (a Cibernética) e cujos frutos provocam estados alterados de consciência (o Psicodelismo).

No jargão das gangs e na gíria das ruas, o termo “afrociberdelia” é usado de modo mais informal:

  • a) Mistura criativa de elementos tribais e high-tech: “Pode-se dizer que o romance The Embedding, de Ian Watson, é um precursor da ficção-científica afrociberdélica”.

  • b) Zona, bagunça em alto-astral, bundalelê festivo: “A festa estava marcada pra começar às dez, mas só rolou afrociberdelia lá por volta das duas da manhã.”

(Extraído da Enciclopédia Galáctica, volume LXVII, edição de 2102)

Paulo André comenta a capa do disco:

“Eu falei: Chico, a banda tem que aparecer na capa, velho, porquê tem um visual bacana, todo mundo é diferente do outro”


Produção

Quando gravou o primeiro álbum “Da Lama ao Caos”, Chico queria que o pernambucano Arto Lindsay fosse o responsável pela produção do disco, mas a gravadora preferiu não arriscar com a banda nova e adotou uma solução caseira. Na época, Lindsay morava em Nova Iorque e a Sony escolheu Liminha, ex-baixista dos Mutantes, que tinha seu próprio estúdio no Rio de Janeiro, o “Nas Nuvens”. “(...) o Liminha já tinha um estúdio próprio, então já tinha um esquema com as gravadoras”, lembra o empresário Paulo André.

Liminha nunca tinha gravado tambores de Maracatu e a banda, por sua vez, não conhecia as nuances de um estúdio profissional.

“Afrociberdelia é o disco que ‘Da Lama ao Caos’ poderia ser, só que não tivemos acesso a uma tecnologia melhor. A gente tem essa crueza que a produção não conseguiu passar no primeiro disco. Nele, ‘Coco Dub’ é a única faixa em que essa crueza foi alcançada, e um pouco em ‘Maracatu de Tiro Certeiro’”, disse Liminha, em entrevista ao jornalista José Teles.

Na entrevista para a Rádio Cultura, Chico considera que o Afrociberdelia abriu novas possibilidades para a banda, que tinha expectativas de novos discos.

“Estamos começando a nossa discografia, vamos ainda trabalhar lá pra frente, com certeza vem muitas novidades por aí”

Com mais liberdade junto à gravadora, para o segundo disco Chico Science escolheu como produtor o guitarrista Eduardo Bid, do Projeto Antena, além de Di Spot, um técnico de som que havia trabalhado com bandas de hip hop nos anos 1990. Bid nunca tinha produzido um álbum inteiro de uma banda.

Chico Science e banda na lama para a gravação do clipe de Maracatu Atômico / Crédito: Gil Vicente

“Todos eram inexperientes e a gente pagou um preço por isso, porque a gente resolveu se mudar pro Rio com a grana que eles iam gastar com hotel. O limite de tempo no estúdio estourou; o orçamento que era de 80 mil foi pra 120 mil, e a Sony fez a banda pagar a diferença”

Os músicos trabalharam no disco de dezembro de 1995 a janeiro de 1996.

“Já vínhamos com a ideia de colocar alguns metais em algumas músicas, para fazer esse encontro do metal com o batuque na nossa sonoridade. Aí nós chamamos Bidinho e o Serginho do Trombone que já são os caras que manjam legal de metais de uma geração funk Brasil”

Em janeiro, a banda tocou na penúltima edição do Hollywood Rock no Brasil, dividindo palco com nomes como The Cure, Smashing Pumpkins, Supergrass e Page and Plant, e a gravadora quis aproveitar a oportunidade para divulgar o disco. Os músicos finalizaram então a faixa “Manguetown” e gravaram o videoclipe da música.

A faixa foi o primeiro single do disco, mas não teve reverberação nas rádios. Preocupada, a gravadora resolveu então fazer remixes da faixa, à revelia da banda.

“Se dependesse do Chico e da banda não rolaria, mas foi uma tentativa desesperada da gravadora de tentar fazer a música tocar nas rádios, nas festas, ou coisas do tipo”

Apesar da primeira faixa ter sido divulgada em janeiro, o disco Afrociberdelia só foi lançado em julho, quando a banda já estava novamente saindo em turnê internacional, que passou pelos EUA e mais sete países da Europa.

A Nação Zumbi extrapolou o rótulo “world music” no exterior, e se apresentou em festivais de música pop ao lado de nomes como Beck e Nick Cave. Mais compacta e bem organizada que a anterior, a turnê europeia de Afrociberdelia aconteceu em menos de um mês e passou por 13 cidades.

Na Alemanha se apresentaram para 20 mil pessoas, em Karlsruhr. Em sua segunda participação no Montreaux Jazz Festival, na Suiça, os Paralamas do Sucesso abriram o show para Chico Science e Nação Zumbi.

Chico e Percussão / Crédito: Maria F. Moreno / Acervo Paulo André

“Hoje em dia tocamos em festivais diferentes já com bandas do mainstream; e nós estávamos lá falando em português, ou melhor, na língua brasileira”, celebrou Chico durante entrevista na Rádio Cultura.

A comunicação no Brasil sempre foi um tema presente no movimento mangue, desde o manifesto: “Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em Teoria do Caos, World Music, Legislação sobre meios de comunicação (...)”. Ouça:.

“Existe essa nuvem que domina o país através de tantos meios de comunicação, então é através disso que a gente tem também que ser os novos hackers, que entrar neles e falar o que estamos pensando”

Afrociberdelia faixa a faixa

Confira os comentários de Chico Science sobre as músicas do álbum para a Rádio Cultura

Maracatu Atômico

Composição de Nelson Jacobina e Jorge Mautner, lançada em 1974 e regravada por Gilberto Gil, Maracatu Atômico ganhou uma nova roupagem na versão de Chico Science e Nação Zumbi. “Fizemos uma versão cool, sônica”, enfatiza Science.

“Era uma música que nós já estávamos a fim de gravar. A letra tem essa coisa da lisergia também, tem esse lado mais psicodélico da chuva, atrás do arranha-céu, as estrelas e uma poesia que tem tantas coisas juntas, uma psicodelia social também”

Um passeio no Mundo Livre

A composição foi feita durante a pré-produção do disco, quando os percussionistas da banda, Gilmar e Gira, ambos negros, sofreram uma abordagem policial quando iam da casa onde moravam para o estúdio.

“Os caras chegaram chateados com essa história, então ‘Um passeio no mundo livre’ veio muito em cima disso. Assim, de andar livremente sem ser perturbado (...). Um sonho de que se tem direito”

Cidadão do mundo

“A música vem (...) como se fosse a história de um garoto que tá vindo do interior; exploração da mão de obra infantil, dos trabalhos forçados da criança. Então ele encontra o cidadão do mundo que é Josué de Castro, na beira do manguezal, chega na cidade que é Recife; vem fugindo de um cara que vem pegar ele, vem de todo aquele cerco”

Chico com Óculos e Chapéu preto / Foto: Acervo Família França

Corpo de Lama

“É uma música que fala que você é como eu, eu sou como você. Uma coisa que vai falando da extensão dos subúrbios pelo mundo, das pessoas no geral. Em todos os lugares do mundo tem pessoas como eu, como você e há muitas garotas sorrindo em ruas distantes; tem esse lado poético: os garotos correndo em mangues distantes enquanto nós estamos conversando aqui... sei lá, tem um monte de garotos andando pelos mangues e fazendo todas aquelas coisas que eu fazia, e as garotas estão sorrindo e nós temos que estar bem”

Criança de Domingo

Outra versão de Chico Science e Nação Zumbi, “Criança de Domingo” é uma composição de Cadão Volpato e Ricardo Savagni, da banda paulistana de post-punk Fellini, uma das referências musicais de Chico.

“Fellini é uma banda que nós já escutávamos antes na praia. Aquela coisa de pedir discos por reembolso postal, que é uma coisa sempre legal. Tinha muito de cotidiano nas músicas, de exaltar o samba, fazer uma coisa diferente com bateria eletrônica; aquela coisa com brasilidade”, conta Chico na entrevista.

Jorge du Peixe, Stela Campos e Chico / Foto: Adriana Fritzen Pereira
Em 1992, Cadão formou outra banda, a Funziona Senza Vapore, com a cantora Stela Campos e mais dois músicos do Fellini. Uma cópia em fita cassete das gravações do disco foi apresentada a Chico no Recife por Stela.

“Nós temos que aproveitar todas essas coisas e o Fellini é muito legal. Admiro muito Cadão Volpato, as letras, e por isso colocamos essa música Criança de Domingo no disco e ficou legal, ficou meio como um aboio, uma coisa meio lua de maracatu. Ficou diferente mas tem uma levada pop”.

Em entrevista ao Portal EBC, Stela Campos lembra que conheceu Chico em 1993. No final do ano ela foi ao Recife, levou a fita matriz com a gravação do Funziona Senza Vapore e mostrou a Chico.

“Ele ficou superfeliz porque eram músicas inéditas do Cadão, ouviu e ficou superinteressado. Essa fita virou meio cult no Recife e aí ele nos convidou pra fazermos um show juntos”

Na foto abaixo feita por Adriana Fritzen Pereira Jorge, Chico, Stela Campos e Dengue no calçadão da Av. Boa Viagem em foto promocional do show “Chico Science Canta Fellini”. A apresentação aconteceu em 1994, no Panquecas, e fazia parte do projeto “Rec-Beat Unplugged” que convidava bandas para interpretarem músicas de seus ídolos.

Chico com Óculos e Chapéu preto / Foto: Acervo Família França

“Afrociberdelia” alcançou o quinto lugar no World Music Charts na Europa. Algumas das faixas do disco, como Manguetown e Etnia, já haviam sido gravadas anteriormente em projetos de Chico Science. Ouça a versão de Manguetown gravada por Chico no projeto Loustal, nome inspirado no quadrinistra francês Jacques de Loustal.

Manguetown

MANGUE: A CENA

Chico, Fred Zeroquatro, Valentina, Du Peixe, Pupillo, Júnior Areia, Raquel Lima, Renato L. / Foto: Acervo Família França

Emergência! Um choque, rápido, ou o Recife morre de enfarto. Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruir as suas veias. O modo mais rápido, também, de enfartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e e aterrar os seus estuários. O que fazer então para não afundar na depressão crônica que paralisa a cidade? Há como devolver o ânimo, deslobotomizar/recarregar as baterias da cidade?

Simples, basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.

Em meados de 91 começou a ser gerado/articulado em vários pontos da cidade um organismo/núcleo de pesquisa e criação de ideias pop. O objetivo é engendrar um “circuito energético” capaz de conectar alegoricamente as boas criações do mangue com a rede mundial de conceitos pop. Imagem símbolo: uma parabólica enfiada na lama. Ou um caranguejo remixando ANTHENA do Kraftwerk no computador.

Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em Teoria do Caos, World Music, Legislação sobre meios de comunicação, Conflitos étnicos, Hip Hop, Acaso, Bezerra da Silva, Realidade Virtual, Sexo, Design, Violência e todos os avanços da Química aplicada no terreno da alteração/expansão da consciência.

Mangueboys e manguegirls frequentam lugares como o Bar do Caranguejo e o Maré Bar.

Mangueboys e manguegirls estão gravando a coletânea Caranguejos com Cérebro, que reúne as bandas Mundo Livre S.A., Loustal, Chico Science & Nação Zumbi e Lamento Negro”.

Programa: 50 anos da Lama ao Caos

Radiodocumentario produzido pela Rádio Nacional FM Brasília

Radiodocumentário Chico Science - 50 anos da Lama ao Caos
Locução: André Gonzales
Roteiro: Morillo Carvalho, Leandro Melito e Ana Elisa Santana
Produção: Bel Pereira
Reportagem: Leandro Melito
Edição: Ana Elisa Santana e Morillo Carvalho
Operação de áudio: Sanderson Freitas
Coordenação de Projetos Especiais e Produção de Rádio - DF / Amazônia: Morillo Carvalho
Gerência de Produção de Rádio - DF / Amazônia: Shirleide Barbosa
Agradecimentos: Família França, Rádio Cultura de São Paulo, DJ Elcy, Gil Vicente, Orquestra Camaleônica do Calango Careta e banda Móveis Coloniais de Acaju