Vida em ocupação

Com déficit de 230 mil moradias, a cidade de São Paulo vive uma situação de emergência habitacional, diz a urbanista e ex-relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Direito à Moradia Adequada, Raquel Rolnik. Segundo ela, a situação tem se agravado nos últimos dois anos. Com a falta de acesso à habitação, a metrópole vê terrenos e edifícios abandonados serem ocupados por famílias pobres, sem condições de custear aluguéis.

“Vivemos um ciclo de expansão econômica na cidade, que teve aumento de renda e enorme aumento da disponibilidade de crédito para a aquisição de imóveis. O reflexo foi a elevação nos preços, muito acima do aumento da renda das pessoas. Isso significa que terrenos e imóveis capturaram uma parte importante das riquezas que foram produzidas na cidade”, explica Raquel.

Movimentos em defesa do direito à moradia estimam a existência de 100 ocupações de terrenos e de imóveis por toda a cidade. Na região central da capital paulista, é possível encontrar bandeiras do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), da Frente de Luta por Moradia (FLM) e do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) em vários prédios deteriorados. A prefeitura calcula que 90 edifícios estejam abandonados apenas no centro da capital.

Em geral, esses espaços abandonados pertencem a massas falidas ou a órgãos públicos. Há ainda casos de proprietários com dívidas de impostos e documentação irregular.

Coordenador nacional do MTST, Guilherme Boulos confirma que a cidade passou por uma expansão de ocupações em dois anos. “De 2013 para cá, não apenas em São Paulo, mas em várias regiões metropolitanas no país, houve aumento expressivo das ocupações, o que, na minha avaliação, tem relação direta com a explosão da especulação imobiliária. A terra virou ouro no Brasil e o aluguel virou uma coisa impagável.”

A impossibilidade de arcar com todas as despesas, em especial as prestações de R$ 450 do aluguel, fez com que Daniele Araújo Adelino, 17 anos, se mudasse, há dois anos, para a ocupação Douglas Rodrigues, na zona norte da capital paulista. Grávida de gêmeos à época, ela descobriu que tinha câncer e que os bebês nasceriam com problemas pulmonares. A família precisou se desfazer dos poucos bens que tinha, como celular e bicicleta, para comprar remédios e leite especial para as crianças. A renda mensal de R$ 400 do marido, que trabalhava como entregador de móveis, não era suficiente para pagar todas as dívidas.

“Esse lugar foi o que salvou a nossa vida. Nós estamos felizes aqui. Mesmo não tendo nada para comer, mas tendo para eles [os bebês] é tudo o que a gente precisa”, afirma.

Para Boulos, grandes incorporadoras são as responsáveis pela especulação imobiliária. Essas empresas abandonam terrenos ou prédios com o objetivo de, no futuro, lucrar com os investimentos públicos de infraestrutura na região. “Eles atuam fazendo lobby com o Poder Público para viabilizar que essas obras cheguem. Então, um terreno que custava R$ 100 o metro quadrado, depois dessas obras de melhoria, passa a custar R$ 300”, diz.

Outro fator agravante é o baixo investimento na construção de moradias populares. A meta da prefeitura de São Paulo, de construir 55 mil casas até 2016, está longe de ser alcançada. Até junho deste ano, foram entregues 4.944 unidades, em 39 empreendimentos, segundo dados do Sistema de Informações para Habitação Social de São Paulo (Habisp). Há ainda 17.140 moradias em construção e 31.040 em fase de projeto.

Diante desse quadro, ocupar foi a solução encontrada pelos excluídos do mercado imobiliário que cobra, em média, R$ 1.106,50 pelo aluguel de um apartamento de dois dormitórios, com 50 metros quadrados, no centro, de acordo com o Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais e Comerciais de São Paulo (Secovi-SP). Há 10 anos, o valor médio do aluguel desse mesmo apartamento era R$ 352, desconsiderando a inflação do período.

“As ocupações aparecem como uma alternativa. Evidentemente, a existência de edifícios vazios, subutilizados e terrenos vazios completam esse quadro”, destaca Raquel Rolnik.

Como lar ocupado não se traduz em moradia definitiva, grande parte das ocupações termina em dramáticas e, muitas vezes, violentas reintegrações de posse acompanhadas pela Polícia Militar.

No Tribunal de Justiça de São Paulo, foram distribuídas, no ano passado, 4.887 ações desse tipo. Até o fim de maio deste ano, foram 1.659 pedidos de reintegração apenas na cidade de São Paulo. O levantamento não indica em qual fase estão os processos e, por esse motivo, não é possível determinar quantas ordens foram cumpridas.

ONG estima o despejo de 22 mil pessoas em São Paulo até o fim do ano

Até o fim deste ano, 50 reintegrações de posse devem ser cumpridas, no centro de São Paulo, com o despejo de 22 mil pessoas, segundo levantamento do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos - organização não governamental (ONG) voltada ao direito à moradia. A entidade trabalha por meio de convênios com a Defensoria Pública e disponibiliza advogados para ajudar, gratuitamente, os moradores de ocupações.

Advogado da ONG, Thiago Santos do Nascimento explica que no pedido de reintegração de posse para imóveis ocupados há menos de um ano, o juiz pode conceder liminar em 15 dias, apenas com a petição inicial. Thiago critica o fato de que, muitas vezes, os ocupantes não são ouvidos e não podem dizer, por exemplo, que utilizam o imóvel há mais de um ano – situação que geraria um processo longo com audiências, sentença e apelação.

“O nosso Judiciário ainda trabalha com parâmetros muito contratualistas. Eles ignoram a Constituição Federal, ignoram o Estatuto da Cidade, ignoram todo o avanço legislativo que o mundo elogia que nós temos. Se você vir as nossas leis fundiárias, elas são muito avançadas. Mas o Judiciário, principalmente o paulista, tende a pegar só a questão do contrato, o Código Civil e ignora todos os outros diplomas, a função social [do imóvel], que está na Constituição Federal”, diz.

Além da falta de diálogo com o Judiciário, as famílias ainda precisam enfrentar a força policial durante as reintegrações de posse.

A Agência Brasil noticiou alguns casos recentes como o de Osasco, quando moradores protestaram ateando fogo nas entradas da ocupação e em um carro e fizeram barricadas. No Conjunto Residencial Caraguatatuba, a Tropa de Choque da Polícia Militar lançou gás de pimenta e bombas de efeito moral contra os moradores. Na desocupação de um prédio na Rua Coronel Xavier de Toledo, moradores foram levados para a delegacia, após a intervenção da Tropa da Choque. Na ação mais violenta do ano passado, em um edifício da Avenida São João, os policiais usaram bombas de efeito moral e balas de borracha. Mascarados se juntaram ao protesto e atiraram pedras contra os policiais. Houve tumulto, saque a lojas e incêndio a ônibus.

Líder do Movimento de Moradia da Luta por Justiça, Ivanete de Araújo critica as ações das forças policiais. “Os policiais não olham quem está dentro do prédio, simplesmente nos tiram de forma agressiva, jogam bomba, batem, jogam gás, bala de borracha. É dessa forma que eles agem contra as famílias sem-teto. Eu me sinto bastante revoltada, até pelo fato de o próprio governo tratar as famílias como lixo, como se fossem marginais”, relata. Ivanete participa de movimentos por direito à moradia desde 1996 e diz que perdeu as contas de quantas reintegrações violentas já enfrentou.

O advogado do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos também faz ressalvas às operações de reintegração e critica, principalmente, os valores gastos pelo Estado.

“Quando você olha para os números, você vê que é algo esquizofrênico, porque vai se gastar tranquilamente R$ 1 milhão numa operação dessas. A PM vai com helicóptero, vai com cavalos, a Tropa de Choque, vai deslocar o efetivo, granadas de gás, todo aquele aparato. Gasta nosso tempo e o do Judiciário para reintegrar a posse de um proprietário que está devendo milhões de reais de IPTU [Imposto Predial e Territorial Urbano] para a prefeitura. Por que se faz isso? Não tem justificativa”, diz Nascimento.

A reportagem entrou em contato com a Polícia Militar, mas não obteve resposta sobre as críticas às ações violentas.

A Agência Brasil conversou com moradores de duas grandes ocupações urbanas na capital paulista sujeitas ao cumprimento de reintegrações de posse ainda no mês de setembro. Dificuldades financeiras e a possibilidade de estar perto do centro da cidade são os principais motivos dessas famílias para morarem em ocupações. Elas não escondem, entretanto, a tensão e o medo de serem despejadas a qualquer momento.

Um contraponto, na terceira parte da reportagem, mostra a história de sucesso de um edifício que nasceu como ocupação e se transformou em um caso raro de usucapião coletivo.



Com 2,6 mil barracos, ocupação reúne 8 mil pessoas em frente à Marginal Tietê

Com 2.620 barracos, a ocupação Douglas Rodrigues sobrevive em uma privilegiada localização na capital paulista, de frente para a Marginal Tietê e próxima à Rodovia Presidente Dutra. Os moradores se beneficiam da estrutura da região norte da cidade, como shopping, centro comercial, rodoviária, escolas e postos de saúde. O nome da ocupação é uma homenagem a um estudante de 17 anos morto, em outubro de 2013, por um policial militar que patrulhava a região.

Ao passar pelos portões de entrada – a comunidade é cercada por muros –, barracos de madeira e alvenaria, de até dois andares, pequenas vielas, chão de terra batida, esgoto a céu aberto, cachorros e crianças compõem o cenário. O tamanho impressiona.

Toda eletricidade e a água da ocupação vêm de ligações clandestinas. A ocupação se formou há exatos dois anos, em agosto de 2013. As primeiras famílias a chegarem ao terreno de 50 mil metros quadrados tiveram de enfrentar o mato alto, os animais peçonhentos, como cobra e escorpião, além de “remover” uma “lagoa” que se formou ali, já que o terreno era leito do Rio Tietê.

No Movimento Independente de Moradia de Luta por Habitação da Vila Maria, 14 pessoas coordenam e tentam manter a ordem entre os mais de 8 mil moradores. Um dos coordenadores José Miguel da Silva, 59 anos, diz qual a regra mais importante dessa pequena cidade: é proibido construir barraco para depois vender.

Os líderes da comunidade tentam conter também a chegada de aproveitadores, como donos de lojas de materiais de construção, que tentam fazer da ocupação depósito para guardar tijolos, telhas, cimento. “O espaço aqui é para moradia, para quem está precisando”, diz José Miguel. Apenas pequenos comércios como mercadinho, quitanda, salão de cabeleireiro, padaria e lanchonete são permitidos.

Dívida bilionária

A aparente tranquilidade na comunidade esconde o temor das famílias de, a qualquer momento, terem de deixar suas casas. A 1ª Vara Civil do Fórum de Tatuapé havia determinado a reintegração de posse do local para 9 de setembro. Essa foi a quinta vez que os moradores sofreram ameaça de despejo.

Na última sexta-feira (4), entretanto, o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, José Reinaldo Nalini, adiou a retirada dos moradores, acatando um pedido da prefeitura, com apoio da Secretaria de Segurança Pública do estado e do Ministério Público. Por questões de segurança, a prefeitura solicitou que o caso seja analisado pelo Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (Gaorp) antes do cumprimento da retirada dos ocupantes. Uma ação de reintegração de posse ofereceria riscos à população e grandes prejuízos à cidade, já que parte da Marginal Tietê precisaria ser interditada.

O Gaorp, órgão coordenado pelo Tribunal de Justiça, foi criado no ano passado, após violenta reintegração de posse na Avenida São João. Com representantes das três esferas públicas (municipal, estadual e federal), o grupo busca a conciliação e a resolução pacífica de conflitos fundiários.

Antes de servir de morada às 2.620 famílias, o local funcionou como depósito da transportadora de caminhões Dom Vital. Os antigos galpões, abandonados há mais de 20 anos, ainda existem e hoje foram transformados em uma imensa residência coletiva. Cada família se organiza como pode, instalando tapumes que servem de divisória para dar mais privacidade.

Proprietária do terreno, a Ideal Empreendimentos S/A, pertencente ao Grupo Tenório, tem dívida estimada em mais de R$ 1 bilhão em impostos com a União, segundo ofício da Procuradoria-Geral da Fazenda obtido pela reportagem da Agência Brasil. De acordo com o documento, a Receita Federal identificou a criação, pelo grupo, de inúmeras empresas de fachada com o intuito de deslocar o capital sem ligá-lo aos passivos tributários.

Para garantir o pagamento de parte da dívida bilionária, a Fazenda Nacional obteve a penhora e o bloqueio da matrícula do imóvel, registrado no 17º Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo. Para os procuradores da Fazenda, o custo social de uma reintegração é “desnecessário e demasiadamente alto”. “Haverá o desalojamento traumático de grande número de pessoas, dentre elas mais de 4 mil crianças e jovens”, diz o documento.

Para a defensora pública do Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo, Luiza Lins Veloso, que acompanha o caso, a reintegração de posse também não seria vantajosa para o proprietário, já que ele teria de arcar com os custos dos caminhões e dos ajudantes para fazer a retirada dos pertences das famílias. “Tudo isso com o imóvel penhorado, que será entregue à União”, explica.

A defensora defende o deslocamento de competência do caso. Na avaliação dela, no momento em que a União demonstra interesse no processo, o julgamento deve ser feito pela Justiça Federal. Apesar do adiamento da reintegração de posse, o processo continua na Justiça Estadual, e os moradores ainda correm risco de serem removidos.

“A ideia é que o imóvel passe para o patrimônio da União e que não haja reintegração de imediato. Haveria uma tentativa de encaminhamento [do imóvel] para as famílias. Não precisaria da execução da ordem”, disse a defensora.

A reportagem conversou com a advogada Maria Rafaela Guedes Pedroso Porto que representa a Ideal Empreendimentos. Ela afirma que as dívidas e o possível penhor da área são questões alheias ao pedido de reintegração de posse.

No mês passado, a prefeitura deu um passo importante em favor dos moradores, ao publicar, no dia 4 de agosto, o Decreto de Interesse Social, que pode resultar na desapropriação da área para habitação social. O local está inserido na Zona Especial de Interesse Social - 2, o que significa que a região tem potencial para construção de moradias populares. Os moradores defendem que o local seja transformado em um empreendimento do Minha Casa, Minha Vida 3.

Região de conflitos

A ocupação se localiza no centro de uma região de intensos conflitos sociais. A morte do estudante Douglas Rodrigues, de 17 anos, em 2013, ganhou grande repercussão depois de testemunhas terem contado que, durante a abordagem, o policial militar não saiu do carro e que o jovem não esboçou reação. Ainda segundo testemunhas, ele apenas perguntou, logo depois de ser atingido: “Por que o senhor atirou em mim?

“Existe muita tensão com a polícia, que também está preocupada. Aquela é uma região de periferia muito pobre”, diz o advogado Benedito Roberto Barbosa, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos.

Moradores das favelas Marconi, Funerária e Berimbau, nas proximidades, garantem que vão se unir às famílias da ocupação Douglas Rodrigues para resistir à reintegração de posse.

A dificuldade de se relacionar com a vizinhança de classe média - há diversos prédios na mesma rua da comunidade - intensifica o clima de tensão. “Eles vivem nos filmando, tentando pegar algum ato irregular. Eles fizeram abaixo-assinado para nos tirar daqui”, conta Miguel.

A reportagem da Agência Brasil conversou com alguns desses vizinhos, que pediram para não ser identificados. Eles dizem que, após a criação da comunidade, o índice de assaltos na Rua Manguari, onde está localizada uma das entradas da ocupação, aumentou. Eles confirmam as filmagens com o objetivo de registrar atos irregulares, como a venda e o consumo de drogas na comunidade, e dizem que estão em contato permanente com o 5º Batalhão da Polícia Militar. Eles também confirmam a organização de um o abaixo-assinado que pede a remoção da ocupação.

Relatos de esperança

Apesar de toda a dificuldade e insegurança de viver em uma ocupação, os moradores mantêm firme a esperança de continuarem na comunidade. Para Queiciane Iraci, 21 anos, morar na Douglas Rodrigues significa a única chance de recuperação do seu filho Gabriel, 4 anos, que sofre de malformação na válvula direita do coração. Mãe e filho vieram da Paraíba, onde não havia estrutura nas redes hospitalares. “Eu morava em São Paulo numa casa de aluguel, pagava R$ 600 por mês. Mas fiquei sem dinheiro. Ou pagava o aluguel ou passava fome”, conta.

A malformação no coração do pequeno Gabriel deixou sequelas que o fazem ter problemas neurológicos e paralisia em todo o lado direito do corpo. Ele também não desenvolveu a fala. Em São Paulo, Gabriel tem acompanhamento médico gratuito do InCor, hospital de excelência, do Hospital do Mandaqui e faz sessões de fisioterapia e de fonoaudiologia na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD).

“Meus sonhos? Primeiro é que meu filho ande, depois é ter a minha casa. Futuramente, eu quero trabalhar para comprar as coisas para o meu filho, ele tem pouca roupa. E colocar ele na escola, para que seja um homem trabalhador”, diz Queiciane.

Dona de uma pequena quitanda na ocupação, Josefa Quitéria da Conceição, 52 anos, lucra R$ 300 por mês com a venda de frutas, verduras e legumes. Ela diz ser suficiente para pagar arcar com as contas já que não paga aluguel. “Hoje em dia eu como filé-mignon. É de porco, mas já está bom, né? Morar aqui é uma delícia. Quem mora de aluguel, tem que pagar prestação, água e luz. E tem o 'se'. Se sobrar, você come”, diz.

Com 17 anos, João Paulo Silva Soares é quem leva dinheiro para casa. A responsabilidade chegou quando, há dois anos, seu pai foi preso por roubo de carga e um dos seus irmãos, por homicídio. Ele tem mais dois irmãos condenados por tráfico de drogas. João agora sustenta a mãe com o dinheiro recebido do trabalho em um lava rápido, onde ganha R$ 35 por dia. “Meu sonho é arranjar um serviço bom, registrado. Ter meu carro, minha moto. Mas a primeira coisa vai ser ajudar a minha mãe, depois eu penso em mim”, diz. João quer também, um dia, voltar a estudar.

No centro da cidade, segunda maior ocupação vertical da América Latina abriga quase 400 famílias

No número 911 da Avenida Prestes Maia, 378 famílias vivem na segunda maior ocupação vertical da América Latina – de acordo com o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, apenas a Torre de David, na Venezuela, tem mais ocupantes. A localização central do edifício de dois blocos, um com 22 andares e outro com nove, é uma das maiores razões para que o imóvel abandonado há décadas pelos proprietários esteja sempre repleto de ocupantes. Bastam alguns passos para chegar na estação Luz do Metrô, no Parque da Luz e na Pinacoteca do Estado.

A estimativa é que mais de 1 mil pessoas vivam no local. “Não tem como saber ao certo a quantidade de pessoas, pois existem desde famílias com dez crianças a pessoas sozinhas”, diz Ivanete de Araújo, uma das líderes da ocupação. No local onde funcionava uma tecelagem, famílias dividem os espaços em pequenos quartinhos. O banheiro e a lavanderia são coletivos.

O elevador deixou de funcionar e os moradores dos últimos andares precisam fazer esforço extra para chegar em suas casas. O prédio sofre com infiltração que leva bolor e mofo às paredes e enche o subsolo de água – a associação de moradores precisou instalar uma bomba para jogar fora a água excedente.

Uma das maiores preocupações do Corpo de Bombeiros, descrita em ofício anexado ao processo de reintegração de posse do imóvel, é o iminente risco de incêndio. A reportagem constatou que não há extintores em nenhum dos andares. Entretanto, há muitos fios elétricos expostos e botijões confinados sem ventilação. Divisórias de madeira completam o cenário. Não há rotas de fuga em caso de emergência e as escadas sem proteção e sem corrimão representam risco evidente, sobretudo para as crianças.

Apesar dos riscos, a moradora Maria José da Silva, 47 anos, diz que gosta da oportunidade de se tratar em hospitais do centro de São Paulo. “Se eu fosse morar longe, não sei como poderia fazer. Faço diálise três vezes na semana, segunda, quarta e sexta. Para morar longe é difícil”, diz Maria José, que sofre de problemas renais.

Antes de se mudar para a ocupação, Maria vivia em uma pensão, mas passou por dificuldades financeiras. O próprio dono da pensão sugeriu que ela fosse para uma ocupação. “Eu fiquei com aquele medo, mas eu fui obrigada a vir, porque os aluguéis estavam atrasados e eu não estava conseguindo pagar.”

Sandra Regina de Oliveira, 53 anos, aproveitou a localização central de sua nova casa para tomar conta de crianças, enquanto as mães trabalham. Ela cuida de seis crianças e tem uma renda mensal de R$ 950. “Dá para sobreviver, guardar um dinheiro para um dia eu poder pagar o meu apartamento. Morando aqui, estou juntando dinheiro, em outros lugares eu não juntava.”

Para morar no local, é preciso pagar uma taxa mensal de R$ 105 que garante o fornecimento de água, energia elétrica e banca outros gastos do condomínio.

O regulamento interno proíbe a ingestão de bebidas alcoólicas, o consumo de drogas, a prostituição e agressões no prédio.

Reintegração de posse

Construído na década de 60 para abrigar uma tecelagem, o edifício foi abandonado no início dos anos 80. A primeira ocupação ocorreu em 2002, mas cinco anos depois os moradores foram removidos. Naquela época, a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) atendeu 150 famílias, que se mudaram para um empreendimento em Itaquera, na zona leste. Outras 150 famílias aceitaram receber a bolsa-aluguel da prefeitura por seis meses, renováveis por mais seis.

Proprietário do imóvel, Jorge Nacle Hamuche, da empresa Axel Empreendimentos Imobiliários Ltda, contou que, após a desocupação, o imóvel ficou um ano e meio vazio, enquanto ele acertava uma parceria com construtoras interessadas em fazer escritórios no prédio.

“Mas aí eles [sem-teto] quebraram o muro e entraram novamente [em 2010]. Estragaram um monumento, um ícone na entrada da cidade”, reclama.

Desde então, os moradores enfrentaram 20 tentativas de reintegração de posse. A próxima ação de desocupação foi marcada pelo juiz Rogério Aguiar Munhoz Soares, da 15ª Vara Cível - Foro Central Cível, para 26 de setembro.

Hamuche explica que a prefeitura entrou com processo de desapropriação e que já depositou o correspondente a 40% do valor a ser pago pelo imóvel em juízo. “Mas o prédio está avaliado em R$ 27 milhões, a prefeitura avalia em R$ 22 milhões. Isso me gera um prejuízo de R$ 5 milhões”, diz o empresário.

A reportagem da Agência Brasil apurou que o proprietário do imóvel não paga o Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU) desde 1986. A dívida atualizada chega a R$ 9,1 milhões. Em 2013, o valor venal do imóvel era estimado em R$ 6,5 milhões, numa área construída de 14,3 mil metros quadrados.

Hamuche admite uma dívida de R$ 6 milhões com a prefeitura, valor que ele garante que será pago caso o imóvel seja desocupado.

Segundo ele, a intenção de estabelecer parcerias para a construção de um prédio de escritórios continua. O empresário diz que não aceitaria um novo acordo para a desapropriação.

“Eu não aceitaria nada desse prefeito [Fernando Haddad]. Foi muito injusto. Ele prejudica a população da cidade inteira, pois está gastando a mais do que pode”, diz Hamuche.

O empresário defende a construção de moradias populares em endereços mais distantes do centro o que, segundo ele, é a opção menos onerosa e mais vantajosa para a prefeitura. “Eu espero que [os ocupantes] tenham a honestidade de sair pacificamente [no próximo dia 26], porque já são quase 20 anos de moradia grátis”, afirma.

Um estudo de viabilidade encomendado pelos ocupantes para verificar a possibilidade de transformação do prédio em moradia popular, realizada pelo arquiteto Waldir Cesar Ribeiro em 2013, mostra que a estrutura e a alvenaria do imóvel estão em boas condições.

“Apresenta bom estado geral em relação à superestrutura e alvenarias, não indicando qualquer patologia importante nesse sentido, visto que não apresenta fissuras ou corrosão das armações que sugiram qualquer comprometimento estrutural”, diz o relatório.

O arquiteto constatou, porém, a deterioração das instalações hidráulicas e sanitárias, instalações elétricas, bombas, elevadores, esquadrias de portas e janelas, revestimentos do piso e paredes que precisariam ser substituídos.

Ainda de acordo com o estudo, seria necessário um investimento de R$ 14,4 milhões para que o imóvel seja transformado em um empreendimento habitacional. Esses recursos seriam suficientes para 300 apartamentos com área privativa de 38 metros quadrados.

De cortiço em ruínas a vencedor de prêmio internacional de moradia

A ocupação de um edifício abandonado no bairro do Bom Retiro, região central da capital paulista, é um dos raros casos de sucesso na área do direito à moradia.

Abandonado ainda em fase de construção, o Edifício União, localizado na Rua Solon, 934, foi ocupado na década de 80 e chegou a abrigar, em seus oito andares, 72 famílias, quase o dobro da capacidade máxima. No início do movimento de ocupação, havia moradores até no poço do elevador. Com o excesso de peso e as estruturas fragilizadas, o imóvel corria risco de desabamento.

Há 26 anos no edifício, a assistente de departamento jurídico Rosemeire Mori, 50 anos, conta que um antigo zelador do prédio vendia os espaços para as famílias que iam chegando. “Muitos não pagaram nada, outros pagaram valores variados. Aos poucos, foi enchendo até o oitavo andar”, diz.

Sem paredes divisórias, os oito andares eram grandes vãos-livres. Quem chegava ao local começava a construir apartamentos e quartinhos, conforme a necessidade. As condições de vida eram precárias, com muito lixo e entulho. “O pessoal que já estava morando embaixo, em vez de jogar o lixo para baixo, ia levando para cima [andares superiores]. Sem contar que tinha muita madeira da própria construção”, lembra Rosemeire.

Não havia energia elétrica, água e rede de esgoto. “Para tomar banho, tinha de ir para a varanda, o único lugar que a gente conseguiu puxar água. Tinha que tomar bem abaixadinha para o pessoal no ponto de ônibus em frente não me ver”, conta Rosemeire.

Os primeiros pontos de energia eram clandestinos. “Era um fiozinho ligado direto do poste para cá e esse fiozinho puxava vários fios, um para cada apartamento. Quase todo dia estourava o transformador no poste, os vizinhos vinham aqui xingar a gente. Desligava a luz da rua, daqui a pouco, um morador eletricista ia lá e ligava de novo. E assim foi durante alguns anos. Os vizinhos querendo matar a gente”, relata.

Segundo a cabeleireira Marlene Aparecida da Silva, 51 anos, moradora do Edifício União há 25 anos, a aparência de cortiço despertava o preconceito da polícia. “Tudo o que acontecia de ruim no bairro do Bom Retiro, a polícia vinha aqui”, lembra.

Há 26 anos no prédio, o maranhense Antônio Francisco de Lima, 61 anos, diz que nos anos iniciais havia muita confusão. “Era briga o tempo todo", relata. Ele conta que várias pessoas chegaram no local com documentos falsos alegando serem donos do prédio. "Isso foi um alvoroço, mas fomos no cartório e descobrimos que [os papeis] não eram verdadeiros", lembra.

Antônio diz que arrumava seus pertences toda semana, com medo de ser despejado. "Mas eu dizia, só vou no último caminhão, acreditávamos que íamos ser donos daqui", afirma.

Com três filhos pequenos e recém-separada do marido, a paranaense Rosemeire diz que chegou no Edifício União com apenas um colchão e uma sacola de roupas. Aos poucos, o entrosamento com os vizinhos mostrou-se fundamental para a sua permanência, já que eles a ajudavam a cuidar das crianças enquanto ela trabalhava.

A escola da Legião da Boa Vontade, uma entidade filantrópica próxima ao prédio, também foi essencial ao aceitar a matrícula da maioria das crianças moradoras da ocupação, em período integral. “Era uma tranquilidade para os pais poder sair de manhã e voltar à noite sabendo que os filhos estavam bem cuidados. Isso segurou muito a gente aqui, porque se a gente muda daqui, onde ia por nossos filhos para estudar? Quem ia cuidar deles para a gente trabalhar?”, lembra. Hoje, os filhos de Rosemeire estão na faculdade.

Recomeço

A história do Edifício União começou a mudar em 2003 quando a professora de sociologia Maria Ruth Amaral de Sampaio, ex-diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), encontrou o prédio, em uma caminhada pelo bairro onde morava. O local virou o principal objeto de estudo do doutorado da pesquisadora.

O primeiro passo foi diminuir a quantidade de moradores – quando Maria Ruth chegou havia 64 famílias – para reduzir o risco de desmoronamento. Depois de várias conversas, a socióloga percebeu que algumas famílias gostariam de voltar aos seus estados de origem, no Norte e Nordeste do país. Foi firmado um acordo com a prefeitura que ofereceu dinheiro da passagem para que pudessem retornar.

Também havia casos de pessoas que perturbavam a ordem no local. “Para começar, tinha lá dentro tráfico de drogas, prostituição e, no meio disso, tinha famílias decentes, trabalhadoras. Eu fiz uma reunião e justamente as pessoas que eram as mais preocupantes do prédio aceitaram o dinheiro para ir embora. Eram 64 e ficaram 42, que moram lá até hoje”, lembra a socióloga.

Também foi necessário refazer os pilares do andar térreo, que estavam corroídos, e ameaçavam as estruturas. Maria Ruth levou engenheiros e estudantes da Escola Politécnica da USP que orientaram os moradores nessa reforma. “Durante um ano, nos fins de semana, os engenheiros treinavam os moradores. Como era só fim de semana, esse projeto durou bastante tempo”, lembra a professora.

Para garantir a segurança estrutural do prédio, o oitavo andar foi demolido. O Instituto de Pesquisas Tecnológicas da USP havia recomendado a derrubada com urgência de uma parte do andar, que ameaçava ruir – o que foi feito pelos próprios moradores. “Eles fizeram essa reforma lá em cima, tinha uma parede mole, nós fomos tirando tijolo por tijolo, para não ter o risco de cair do outro lado. Fizemos uma limpeza geral. Descemos tudo o que tinha de lixo, deu uns quatro ou cinco caminhões de entulho, restos de madeira”, lembra Rosemeire.

Usucapião coletivo

Apesar de toda a ajuda que receberam e melhoria nas condições de vida no Edifício União, um fantasma ainda assombrava aquelas famílias: a reintegração de posse. “A gente sempre teve essa preocupação. E se a gente arruma tudo, reboca, faz um monte de coisa e daqui a pouco vem o juiz e a gente vai pra rua. A prioridade, antes da reforma, sempre foi o documento”, lembra Rosemeire.

Os moradores buscaram ajuda no Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos. Os advogados ingressaram na Justiça, em 2002, com o primeiro pedido de usucapião (o direito à posse de um imóvel pelo uso prolongado) para cada uma das famílias. Esse direito é concedido com mais garantia quando os ocupantes fazem melhorias no local e o Edifício União se enquadrava no requisito. Segundo os advogados do Gaspar Garcia, o antigo proprietário do imóvel morreu, sem deixar herdeiros.

As famílias criaram uma comissão com o objetivo de regularizar as dívidas do imóvel, como o da energia elétrica. A professora Maria Ruth colaborou com a doação das caixas de luz, e os moradores fizeram uma arrecadação para contratar um eletricista que estruturasse a parte elétrica e permitisse que cada morador tivesse sua própria conta de luz.

Os moradores foram ainda mais longe e quitaram os débitos atrasados, desde a década de 80, do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) – a dívida total foi parcelada e, atualmente, faltam 34 parcelas para quitação. As contas de água também foram regularizadas.

Em 2005, o Centro Gaspar Garcia entrou com o segundo pedido de usucapião, mas dessa vez coletivo, em nome de todos os moradores. Para alívio das famílias, dez anos depois, em 19 de janeiro deste ano, a Justiça determinou o usucapião coletivo – o único caso para um prédio inteiro no país, de acordo com Thiago.

Em 2008, o projeto venceu o prêmio Deutsche Bank Urban Age Award, oferecido pela London School of Economics and Political Science, que celebra soluções criativas e programas que beneficiam comunidades e residentes locais em ambientes urbanos. O Edifício União concorreu com 133 projetos e venceu o prêmio de US$ 100 mil.

A quantia continua depositada em uma conta bancária e será usada na reforma do próprio imóvel – a comissão de moradores ainda não decidiu se usará o dinheiro para consertar as escadas, melhorar a fachada ou instalar elevadores.