O Caminho das Margaridas

Por que marcham as milhares de trabalhadoras rurais que, desde 2000, ocupam durante um dia as ruas de Brasília numa caminhada que leva o nome da paraibana Margarida Maria Alves? Por que deixam suas casas, roças, maridos e filhos e fazem viagens de ônibus que podem durar mais de dois dias até a capital?

A Agência Brasil ouviu mulheres de várias partes do país e viajou mais de 2 mil quilômetros em uma jornada de 44 horas para acompanhar um grupo vindo dos arredores de Campina Grande, na Paraíba, e entender as razões que motivam e animam a marcha. Nesta edição, a quinta desde 2000, a expectativa é reunir 70 mil margaridas em uma das principais vias de Brasília, o Eixo Monumental, que leva à Praça dos Três Poderes, onde estão o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto.

Entre as respostas para os porquês da marcha, a busca por melhorias na vida do campo, com mais estrutura de educação e saúde para elas e os filhos; mais inclusão das campesinas no sistema produtivo; e a vontade de ajudar outras mulheres a enfrentar o machismo e a violência doméstica.

“Este ano vou marchar para que tenhamos mulheres mais livres, mais reconhecidas, mais valorizadas e para que tenhamos um Brasil que seja cada vez melhor, que saia rapidamente dessa crise, um Brasil que os brasileiros merecem”, disse a agricultora e líder sindical gaúcha Inque Schneider, mostrando que em 15 anos a mobilização agrupou novas pautas, para além das questões do campo.

Na última marcha, em 2011, um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) revelou que as margaridas têm, em média, 42 anos, e a maioria vem do Nordeste e do Norte do país (20% apenas do Pará). Mais de 68% vivem na zona rural e não querem se mudar para a cidade. Segundo o levantamento, 67% vivem da agricultura familiar.

Trinta e dois anos depois do assassinato de Margarida Maria Alves, morta a tiros por um pistoleiro de aluguel, a luta da sindicalista continua inspirando trabalhadoras rurais a brigar por seus direitos.

“É melhor morrer na luta do que morrer de fome”

Margarida em um discurso gravado na fachada de sua antiga casa

Se hoje as mulheres do campo não morrem mais de fome, a violência – principalmente a doméstica – é um dos problemas apontados por campesinas de Norte a Sul do país.

Na mesma pequisa, o Ipea apontou que 27% das mulheres que marchavam já tinham sido vítimas de violência física e 58% já tinham sofrido algum tipo de violência moral ou psicológica.

A preocupação e a cobrança por políticas públicas efetivas para o tema levou as margaridas a fazer do combate à violência contra a mulher uma das principais bandeiras da mobilização deste ano. A inclusão produtiva e a guerra contra os agrotóxicos também estão na lista de reivindicações nos 15 anos da marcha.

"Vale a pena marchar sim. É uma glória para as mulheres rurais que nunca conheceram nada terem essa oportunidade de viajar. Sem luta, a gente não consegue nada. Se a gente cruzar os braços, fica pior. Tem que ter fibra, ter confiança na luta, e se a gente não consegue todos os objetivos que queremos, pelo menos alguns frutos brotarão, o que a gente não pode é baixar a cabeça, tem que estar sempre firme. O nome de Margarida ficou imortalizado. Se a gente vai cantar, se a gente quer representar alguma coisa de garra da mulher, a gente diz que é uma margarida. Forte como Margarida”

Maria da Soledade Leite, violeira e repentista, foi amiga de Margarida Maria Alves

Margarida Maria Alves

Trinta e dois anos depois, ela ainda influencia a luta de mulheres do campo

Três meses antes de ser assassinada na porta de casa, na frente do marido e do filho pequeno, a líder sindical paraibana Margarida Maria Alves disse, em um discurso de comemoração pelo 1° de maio (Dia do Trabalhador), que era melhor morrer na luta do que morrer de fome. Trinta e dois anos depois de sua morte, as palavras de Margarida ainda ecoam entre as mulheres trabalhadoras rurais e dão força para a luta diária por representatividade e melhores condições de trabalho e de vida no campo. Outra frase famosa do mesmo discurso, “da luta eu não fujo”, está gravada em umas das paredes da antiga casa de Margarida Alves que se transformou em museu em 2001. Na construção simples, uma geladeira azul que foi da camponesa ainda está guardada.

Nos quatro cômodos da casinha de fachada amarela também estão à vista documentos da época em que Margarida liderava o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, atas de reuniões, instrumentos usados pelos trabalhadores no corte da cana-de-açúcar para as usinas, fotos e objetos pessoais: uma camisa branca com bordado de flores, os óculos, o chapéu usado por ela quando visitava os trabalhadores na roça e uma bolsa.

Nas paredes, recortes de jornais de todo o país e alguns do exterior dão a dimensão da repercussão do crime ocorrido em 12 de agosto de 1983. O assassinato chamou a atenção do Brasil para o clima de tensão entre sindicatos e latifundiários da região do Brejo Paraibano nos anos 1980. Como Margarida Alves, outras lideranças de trabalhadores também estavam marcadas para morrer. Mesmo diante das ameaças, a campesina não se intimidou e só teve a voz calada pela espingarda calibre 12 de um matador de aluguel. Mesmo com a exposição nacional do crime, que chegou a ser denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, trinta anos depois, nenhum dos mandantes foi condenado.

Sindicalista

Entrar na casa onde viveu a amiga faz a violeira e repentista Maria da Soledade Leite se emocionar, sem esconder o orgulho da companheira que foi a primeira mulher a presidir um sindicato de trabalhadores na Paraíba:

“Margarida era uma mulher determinada, não era dessas de baixar a cabeça”

“O trabalhador tinha a maior confiança nela, nós tínhamos, porque ela quando ingressava numa luta, ia até o final. A luta de Margarida era pelo décimo terceiro, pela carteira assinada, pelo direito ao sítio, porque os patrões plantavam a cana até na porteira da casa, quando a gente abria a porta da casa já estava dentro dos canaviais, a luta dela era para que o trabalhador tivesse um areazinha onde pudesse ter suas plantações, enfim, poder dar uma vida digna a sua família.”

Soledade e Margarida se conheceram em Alagoa Grande em 1975 e lutaram juntas pelas mesmas causas, na militância sindical e também por meio da arte dos repentes e dos cordéis. Quando Margarida morreu, a homenagem da amiga foi em forma de verso:

“Dia 12 de agosto nasceu um sol diferente
um aspecto de tristeza, o sol frio em vez de quente
era Deus dando o sinal da morte de uma inocente (…) Jesus cristo deu a vida pra redimir os pecados
Tiradentes pela pátria foi morto e esquartejado
Margarida na defesa dos pobres e necessitados”

Se a saudade ficou registrada no poema, a memória de Margarida continua inspirando Soledade a cantar e brigar pelos direitos das mulheres paraibanas. Desde 2000, a violeira participa da Marcha das Margaridas – mobilização inspirada na líder campesina – e só não vai se juntar à caminhada em Brasília este ano por causa de uma dor no joelho. “O nome de Margarida ficou imortalizado, onde a gente estiver, sempre o nome de Margarida vai estar na frente. Se a gente vai cantar, se a gente quer representar alguma coisa de garra da mulher, a gente diz que é uma Margarida, forte como Margarida, sempre o nome de Margarida.”

A trajetória da líder sindical também é usada como referência pela assessora técnica da organização não governamental AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia, Adriana Galvão Freire, para incentivar outras mulheres a buscar seus direitos. A organização atua no Polo da Borborema, uma articulação sindical e de entidades da agricultura familiar de 14 municípios da microrregião do Brejo Paraibano. Sobre Margarida, Adriana diz:

“A gente sempre usa Margarida como uma referência, uma inspiração para a nossa luta. Ela sempre faz parte do nosso processo, como uma inspiração de que o lugar da mulher também é na luta, como ela mesma dizia. Essas frases, a figura, a força de Margarida sempre contagia”.

Para que a impunidade do caso Margarida Alves não se repita, mulheres e jovens do Polo da Borborema se mobilizam há dois anos para pedir justiça pelo assassinato da agricultora Ana Alice Valentin, estuprada e morta, quando voltava da escola, aos 16 anos, por um vaqueiro. No próximo dia 18, o caso vai a julgamento e o grupo vai acompanhar a sessão com uma manifestação e uma vigília.

A jornada

De Campina Grande a Brasília, 44 horas de histórias e expectativas das margaridas

Só de pensar na viagem até Brasília, a agricultora e costureira Fátima Monteiro sentia frio na barriga um dia antes de embarcar para a 5ª edição da Marcha das Margaridas. “Estou muito ansiosa para chegar lá e ver aquele pessoal, aquela multidão falando uma coisa só, vai ser muito bom”, disse enquanto tramava um cachecol de tiras de malha lilás, fazendo das mãos um tear. “É para o frio do ar-condicionado”, explicou.

No domingo (9) cedo, ela e mais 37 mulheres do Polo da Borborema – articulação de entidades sindicais que atua em 14 municípios da região do Brejo Paraibano – embarcaram em um dos quatro ônibus que saíram em caravana de Campina Grande até Brasília. Fátima deixou a casa e a pequena roça à beira de uma rodovia no município de Queimadas para, durante uma semana, acompanhar camponesas em busca de direitos.

A caravana saiu de Campina Grande às 10h15 com mais de 2,1 mil quilômetros pela frente até Brasília, numa viagem que só terminou 44 horas depois. Na despedida, abraços nas companheiras que ficaram na Paraíba e muitos votos de boa sorte e coragem para as margaridas em marcha.

Na bagagem das paraibanas, a camiseta lilás, o chapéu de palha enfeitado com flores que já virou símbolo da mobilização, e o orgulho de serem conterrâneas da líder sindical Margarida Maria Alves, que inspirou a marcha. “A gente vai com uma força muito grande da Margarida daqui, a gente fica feliz porque sabemos que estamos levando uma caravana de mulheres do estado onde começou esta luta. Margarida está viva dentro de nós, porque cada uma de nós tem essa inspiração dela, de força, de luta e de coragem”, disse a líder sindical e integrante da coordenação executiva do polo, Maria do Céu Silva Batista de Santana.

Casos de violência

Antes de se juntar à marcha e ao movimento sindical, Fátima foi vítima de violência doméstica e aguentou por muitos anos o marido agressor. Por esse motivo, durante a caminhada em Brasília, ela também vai comemorar os nove anos da Lei Maria da Penha, completados no início de agosto.

“Eu era muito sofrida em casa e aí comecei a participar do sindicato, quando comecei, sempre que ia nas reuniões meu ex-companheiro me agredia, depois fui perdendo o medo devagarzinho”, contou.

“Cheguei um dia em casa e estava aquela zoada, botei a comida e ele quebrou o prato, uma cadeira passou pela janela e eu disse 'seja o que Deus quiser, se Ele quiser, que esse homem saia da minha vida'. Estava aperreada, chorando, angustiada, aí Deus tirou ele da minha vida, sem ser por morte, e agora vivo bem, criei meus quatro filhos”, lembrou.

No ônibus, Fátima fez questão de sentar na primeira fila, perto de antigas e novas companheiras de luta e de estrada. No caminho, frutas, água fresca, suco e sanduíches servidos por Maria do Céu, apelidada de “aerocéu”, por causa do carinhoso serviço de bordo. “Muito melhor que comida de avião”, brincou uma das margaridas.

A primeira parada da caravana, em Sumé, 120 km depois de Campina Grande, foi apenas uma pausa para esticar as pernas. Na espera para usar o banheiro, uma cena que se repetiria por todo o longo trajeto: mulheres nas filas do masculino e feminino, sem espaço para a concorrência.

Na TV do ônibus, vídeos sobre agroecologia e autonomia das mulheres filmados no Polo da Borborema para inspirar a viagem e a marcha. Nos intervalos, conversas entre as fileiras, risadas às vezes tímidas, às vezes gargalhadas, e muita troca de experiência entre as margaridas.

“Casamento é um grande formigueiro, não quero entrar em outro nunca mais”, comparou a agricultora Maria José Barbosa. “Graças a Deus meu marido está mudando porque eu também mudei. Antes não me deixava usar nem batom, hoje sou passarinho que voa livre”, emendou a companheira de viagem Josélia de Andrade Pereira, a mais vaidosa da turma, maquiagem sempre a postos.

Entre uma fofoca e outra, surgiam as histórias que levaram cada uma das margaridas a estar ali. Os olhos vivos e o sorriso fácil da agricultora Ligória Felipe não davam sinais do sacrifício que ela enfrentou até embarcar.

“Me programei durante 15 dias e na véspera faltou dinheiro, fiquei lisa porque usei o dinheiro para comprar fralda e remédio para minha neta”, contou. “O sindicato disse que não podia dar mais dinheiro, mas depois decidiu que sim. Na véspera disse 'vou fazer um bolo para a gente tomar café da manhã na estrada'. Quebrei as espigas de milho, preparei tudo, aí meu marido chegou embriagado e quebrou todas as lâmpadas da casa. A casa ficou no escuro, não tive como fazer [o bolo]. Eu disse a ele 'você pode quebrar até a casa, mas eu vou'. Eu tinha que fazer, porque se eu não fizesse isso, da próxima vez, ele ia fazer coisa pior, eu tinha que vir”, completou.

A violência doméstica sentida na pele por Fátima e Ligória também preocupa as margaridas mais jovens da caravana, como a agricultora e estudante Adailma Pereira, 25 anos, que vai marchar para que as mulheres possam escolher seus lugares no mundo. “Mulher tem seu lugar e não precisa ser só do lado do marido e da casa. Lugar de uma mulher pode ser ao lado de um homem, mas como sua parceira, na sociedade, como uma pessoa, um ser humano, no lugar que ela merece estar.”

Ensaios para a marcha

No fim do primeiro dia de viagem, a segunda pausa: Salgueiro, em Pernambuco. Nesse ponto, a caravana de Campina de Grande encontrou ônibus vindos de outros estados do Nordeste para seguir viagem e atravessar em grupo as rodovias da região, conhecidas pelos altos índices de assalto. Na parada, mais filas e R$ 4 para usar o chuveiro. “Antes o banho aqui era de graça, estão se aproveitando das margaridas”, reclamou uma das viajantes. Banho tomado, jantar e o pneu de um dos ônibus trocado, pé na estrada noite adentro.

O desconforto de dormir em uma cadeira, sem esticar pernas e coluna, era motivo de reclamação de vez em quando, quebrando o silêncio da noite escura do sertão pernambucano. Na segunda-feira, o café da manhã já foi na Bahia, no município de Itaberaba, na região da Chapada Diamantina. Mais uma vez, pouco banheiro para muitas mulheres. Para o desjejum, café com leite e pão trazido da Paraíba.

De volta à estrada, hora de ensaiar a canção mais famosa da marcha, o Canto das Margaridas:

“Olha Brasília está florida
Estão chegando as decididas
Olha Brasília está florida
É o querer, é o querer das Margaridas”

Microfone aberto, a cantoria seguiu com sucessos de Luiz Gonzaga, Roberto Carlos, canções de romarias e de outras lutas. Entre as músicas, o conhecido refrão de uma canção do compositor Zé Pinto para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST):

“Para mudar a sociedade do jeito que a gente quer
Participando sem medo de ser mulher”

Em meio ao cansaço de mais de 30 horas de viagem e mais duas paradas na Bahia, Maria do Céu, que participou da marcha em 2011, garante que a peleja para chegar a Brasília vale a pena. “Fiquei muito encantada porque são muitas mulheres e muitos objetivos em comum. Cada mulher, seja ela indígena ou quebradeira de coco, cada uma tem seu objetivo que é lutar pela vida, pela natureza, pela igualdade, por uma água boa, de qualidade, pela alimentação saudável. A gente encontra a diversidade de mulheres que trabalham em todos os lugares com esses objetivos.”

Diversidade

A mistura de mulheres da marcha também está representada na caravana paraibana, que leva agricultoras, mas também estudantes e empregadas domésticas, de 20 a 65 anos. A margarida mais experiente do grupo, Socorro Albuquerque de Araújo, fala com a tranquilidade e a firmeza de quem já viu muito da vida.

“Desde os 15 anos comecei a fazer parte desses movimentos, na igreja, na escola, nos sindicatos e nunca parei. Vou marchar em respeito à luta que Margarida teve, ela foi quem começou este movimento, a partir disso foi que as próprias mulheres tomaram coragem e estão aqui. Desde 1983, quando ela foi assassinada, estamos nessa luta. Naquele tempo, tinha coisas que a gente tinha vontade de dizer, mas não dizia porque você arriscava sua vida e a de quem estava com você. A partir desse movimento foi que tivemos a liberdade”, comparou.

A disposição de Socorro animou as margaridas mais jovens do ônibus, Marta Piris Machado e Sidnéia Bezerra, ambas de 20 anos. “As marchas são as mulheres saindo de casa pelos direitos delas não é? Porque as mulheres ainda não são respeitadas, não têm o devido valor. E quando várias mulheres se juntam, é melhor do que só uma. Uma não tem voz, mas muitas têm”, disse Sidnéia.

Com a experiência de quem vai participar da Marcha das Margaridas pela terceira vez, a presidenta do Sindicato de Trabalhadores Rurais do município de Queimadas, Maria Anunciada Flor Moraes, também motivava as companheiras de viagem, apesar do cansaço da estrada.

“É na marcha que estamos colocando nossas reivindicações como mulheres e estamos expondo as nossas experiências, nossas superações, é um espaço de debate político que para nós é gratificante”, disse a agricultora que deixou o marido e as duas filhas em casa para marchar. “Quanto mais a gente vai se distanciando, mais a saudade vai aumentando, mas depois vem o momento mais gostoso, que é o momento da volta, para chegar em casa e contar tudo o que aconteceu durante a viagem e o que vivemos em Brasília.”

No trajeto até a capital federal, o grupo deixou para trás paisagens do Brejo Paraibano, do Agreste, do Sertão, da Chapada Diamantina até chegar ao Cerrado na madrugada de terça-feira, antes de entrar em Brasília, às 6h. O ônibus das margaridas paraibanas estacionou ao lado de outras centenas que também trouxeram mulheres para a marcha.

Sob o frio da manhã que acabava de nascer, as margaridas paraibanas se juntaram para a primeira foto na capital. Fátima, do começo da história, nem precisou do cachecol tecido na véspera e o frio na barriga deu lugar à alegria de ter chegado.

Reivindicações

Marcha das Margaridas pede fim da violência contra a mulher

Inspirada na líder sindical paraibana Margarida Maria Alves, assassinada em 1983 por defender direitos sociais de trabalhadores rurais, a Marcha das Margaridas chega à 5ª edição em uma trajetória de 15 anos marcada por conquistas para as mulheres do campo e algumas frustrações no caminho.

Desde 2000, campesinas, quilombolas, indígenas, cirandeiras, quebradeiras de coco, pescadoras, ribeirinhas e extrativistas do Brasil todo vêm a Brasília em agosto com suas camisetas lilás e chapéu de palha para marchar por igualdade, autonomia e melhores condições de vida e trabalho para as mulheres no campo e na floresta. A marcha, organizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), com o apoio de outras entidades sindicais, é considerada a maior mobilização de trabalhadoras rurais do país. As margaridas marcharam em 2000, 2003, 2007 e 2001. Elas voltam a ocupar a Esplanada dos Ministérios hoje (12), exatos 32 anos após a morte de Margarida Maria Alves.

“Há 15 anos, construir uma marcha em Brasília no momento neoliberal que o país vivia foi um ato de profunda ousadia dessas mulheres. Estamos falando de mulheres que moram em lugares distantes, no meio da floresta, nos rincões do Semiárido. Entre essas mulheres estava o maior número de pessoas que passavam fome, o acesso a políticas públicas era muito complicado”, lembrou a vice-presidenta da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Carmem Foro.

“De lá pra cá, algo muito importante aconteceu, colocamos na agenda do Estado brasileiro a necessidade de políticas que estivessem ao alcance das mulheres e homens do campo”, completou Carmem, que esteve à frente da organização de duas marchas quando era secretária de mulheres da Contag.

A atual secretária, Alessandra Lunas, diz que a entidade espera trazer 70 mil mulheres à marcha deste ano. Segundo ela, a mobilização chega a um momento de maturidade e autocrítica, com saldo positivo para as margaridas. “Além de ser um marco na história, é nítido o avanço em 15 anos. É impossível falar nas políticas públicas para as mulheres sem falar da Marcha das Margaridas. Ela cria um marco de referência que mostra a importância e a força da unidade de lutas das mulheres”, avaliou.

União

O encontro de mulheres tão diferentes, mas com demandas tão parecidas também chamou a atenção da secretária de mulheres da Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Tocantins, Maria Ednalva da Silva, que participou de todas as marchas. “Sejam mulheres do meu estado ou de outro, a luta é a mesma, o mesmo objetivo, a mesma dificuldade, tudo é comum. A diferença é a forma de trabalhar, umas com a uva, com a maçã, aqui na minha região a gente trabalha com a mandioca, com a fava. A luta em si é pela mesma causa, o mesmo objetivo”, comparou.

A diversidade entre as margaridas também faz da marcha um bom lugar para fazer novas amigas, como lembra a gaúcha Inque Schneider que, este ano, organizou a caravana de 530 mulheres do Rio Grande do Sul a Brasília. “Na primeira vez que participei da marcha, não conhecia as mulheres nordestinas, foi uma bela interação. A gente começa a entender as mulheres de outros estados, de outras culturas. Nós, do Sul, temos uma cultura mais especifica, então, na primeira vez, fiquei de boca aberta, porque não imaginei que existia tanta diferença em termos culturais.”

Este ano, quando Maria Ednalva e Inque se encontrarem com amigas que fizeram em outras marchas, vão reivindicar – entre outras bandeiras – medidas efetivas de combate à violência contra a mulher; políticas de inclusão produtiva e mais creches na zona rural, temas elencados como prioridades por margaridas ouvidas pela Agência Brasil. O caderno de pautas da 5ª Marcha das Margaridas foi entregue ao governo no começo de julho e deverá ser respondido no encerramento da caminhada, em um evento com a presidenta Dilma Rousseff.

“A cada ano, mais e mais mulheres são vítimas de violência. Espero que o governo, que a presidenta Dilma, como mulher, dê respostas mais concretas. Às vezes a lei chega, mas está no papel, não chega a se concretizar”, reclamou Maria Ednalva, repetindo uma queixa frequente de mulheres de outras partes do país.

Junto com o Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural, a chegada de unidades móveis de combate à violência contra a mulher no campo é uma das principais conquistas da Marcha das Margaridas em 15 anos, segundo Alessandra Lunas, da Contag. Os ônibus, que circulam pelo interior do país para atendimento de vítimas, reúnem serviços como delegacias, defensorias e atendimento psicológico.

No entanto, como lembra a vice-presidenta da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Pará, Rita da Luz da Serra, os estados e municípios muitas vezes não têm estrutura para dar continuidade ao atendimento.

“Muita coisa mudou nos últimos anos, com a Lei Maria da Penha, com o pacto de combate à violência do governo federal. O Pará tem duas unidades móveis terrestres para levar às comunidades rurais dos municípios, mas em alguns estados os governos não assinaram o pacto e não o executam. Se a gente ficar de braço cruzado achando que os governos vão fazer do jeito que a gente quer, não vai acontecer, as mulheres têm que cobrar."

Prioridades

O fortalecimento das experiências da agroecologia e a criação de políticas de inclusão produtiva das mulheres do campo também estão na lista de prioridades da agricultora Adailma Pereira, de Queimadas, na Paraíba.

“Queremos mais oportunidades para botar nosso produto no mercado, ter nossos direitos. Vender sem ter que passar por atravessadores, porque você suou para ter aquele seu produto. Falta também formação para mulheres agricultoras porque, às vezes, elas têm um terreiro repleto de plantas medicinais, mas não têm formação para saber fazer uma pomada, um medicamento”

Segundo a diretora de Políticas para as Mulheres Rurais do Ministério do Desenvolvimento Agrário, Célia Watanabe, as margaridas terão respostas para as principais reivindicações deste ano. “Vão ser anúncios ligados a essas áreas, e, independentemente dos temas que elas elegeram, há vários outros pontos relacionados à produção, reforma agraria e crédito”, listou, sem dar detalhes. “O governo vai entregar um caderno de respostas ponto a ponto, inclusive para questões que não forem resolvidas até o dia 12, com algumas propostas que continuarão sendo discutidas”, disse.

Apesar de reconhecer e comemorar avanços, há pautas que estão desde 2000 na lista das margaridas sem resposta satisfatória do governo, principalmente as ligadas ao uso de agrotóxicos.

“A questão dos agrotóxicos é um tema que ainda não conseguimos avançar na medida que gostaríamos. Na verdade, gostaríamos que fossem proibidos determinados agrotóxicos que fazem mal à saúde de quem usa no trabalho e de quem come o alimento [produzido com ele]” disse Carmem Foro.

Além das trabalhadoras do campo e da floresta, que caracterizam a Marcha das Margaridas, a caminhada de cerca de cinco quilômetros deve atrair Marias, Franciscas e Anas de outros movimentos sociais.

“Todas as mulheres que se veem nessa pauta são bem-vindas nesta marcha, entre elas as companheiras urbanas. A marcha não trabalha a pauta apenas para mulheres rurais, quando a gente pauta o enfrentamento à violência, por exemplo, é de todo mundo; a soberania alimentar não diz respeito apenas às mulheres do campo”, disse Alessandra Lunas, da Contag.

Fotos

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