Depois de doze anos em vigor, a lei brasileira que restringiu a posse e o porte de armas de fogo no país está prestes a ser alterada pelo Congresso Nacional. Desde 2003, o Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826) vem sendo ameaçado por tentativas de revogação que agora podem ser concretizadas com a aprovação do Projeto de Lei 3.722/2012, que está pronto para votação no plenário da Câmara dos Deputados.

Em meio a polêmicas e bate-bocas públicos entre parlamentares, as mudanças no estatuto foram aprovadas no começo de novembro pela comissão especial criada na Câmara, de onde seguiram para o plenário. Se aprovada pela maioria dos deputados, a proposta ainda precisa passar pelo Senado Federal, onde o debate deve ser mais equilibrado.

O projeto, batizado de Estatuto do Controle de Armas, dá a qualquer cidadão que cumpra requisitos mínimos exigidos na proposta o direito de comprar e portar armas de fogo, inclusive a quem responde a processo por homicídio ou tráfico de drogas. Além disso, reduz de 25 para 21 anos a idade mínima para comprar uma arma e garante o porte de armas de fogo a deputados e senadores. (veja quadro com principais mudanças)

O embate em torno das mudanças extrapola os corredores do Congresso e opõe entidades da sociedade civil e especialistas em segurança pública. O tema também tem ganhado espaço nas redes sociais.

Números

Mais de 880 mil pessoas morreram no Brasil vítimas de armas de fogo (homicídios, suicídios e acidentes) de 1980 a 2012, segundo o Mapa da Violência 2015. No último ano do levantamento, 42.416 pessoas morreram por disparo no país, o equivalente a 116 óbitos por dia.

Em 2004, primeiro ano após a vigência do Estatuto do Desarmamento, o número de homicídios por arma de fogo registrou queda pela primeira vez após mais de uma década de crescimento ininterrupto – diminuindo de 39.325 mortes (2003) para 37.113 (2004).

Com 15 milhões de armas de fogo (8 para cada 100 mil habitantes), o Brasil ocupa a 75ª posição em um ranking que analisou a quantidade de armas nas mãos de civis em 184 nações. No levantamento, feito pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (Unodc) e a Small Arms Survey – entidade internacional que monitora o comércio de armas e conflitos armados no mundo –, os Estados Unidos aparecem no primeiro lugar do ranking, com 270 milhões de armas em uma população de 318 milhões de habitantes (mais de 85 armas para cada 100 mil habitantes).

Segundo o Mapa da Violência 2015, do total de armas no Brasil, 6,8 milhões estão registradas e 8,5 milhões estão ilegais, com pelo menos 3,8 milhões nas mãos de criminosos.

De acordo com o Ministério da Justiça, de janeiro de 2004 a julho deste ano, 671.887 armas de fogo foram entregues voluntariamente por meio da Campanha Entregue sua Arma, prevista no Estatuto do Desarmamento.

Uma arma não mata uma pessoa, mata uma família inteira

Foi no dia 23 de novembro de 2011, meu neto Geison tinha 13 anos. A gente chegou em casa do dentista, ele tinha acabado de restaurar o dente e queria mostrar para o pai. Foi com meu outro neto, mais velho, e saíram os dois de bicicleta, o Geison ia guiando. Mas não foram só na casa do meu genro, foram algumas quadras mais abaixo. Passaram por um grupo de jovens e um dos rapazes saiu para buscar uma arma. Quando meus netos voltavam pela rua, uma menina do grupo disse “olha os moleques da Quadra 26”, o cara puxou a arma e atirou nas costas do meu neto. Não perguntou nada, atirou. Ele simplesmente matou porque achava meu neto parecido com alguém. E essa arma, segundo me contaram, foi comprada por uma mãe. Ela comprou para que os filhos se defendessem, porque tinha perdido um filho assassinado dentro de casa. E um desses meninos foi quem entregou a arma para o rapaz que atirou no meu neto. Quando cheguei no local, dez minutos depois, o corpo dele já estava coberto, não deu tempo nem de levar para o hospital. A sensação nessa hora é uma das piores coisas do mundo, de impotência, de perda, eu queria uma resposta para aquilo ter acontecido. A facilidade com que se consegue uma arma é inacreditável. Quando teve o plebiscito [referendo] sobre o desarmamento, ali era a hora em que a gente poderia ter evitado muita coisa, muita tragédia. Esse acesso a armas vai continuar destruindo famílias, tanto com acidentes dentro de casa como na rua. Porte de arma é para polícia, é para quem trabalha com segurança, não para qualquer cidadão. O cidadão não tem que se armar, a pessoa de bem não tem que andar armada, para não acontecer justamente o que aconteceu na minha família. Mudar a lei é absurdo, é para quem nunca perdeu ninguém, para quem não está passando pelo que minha família está. Porque uma arma não mata uma pessoa, mata uma família inteira. Aquele tiro, aquela bala não matou meu neto, matou uma família inteira, destruiu tudo. Nilta Martins de Jesus
49 anos, funcionária pública

Com uma arma, o cidadão
consegue se defender

O fato ocorreu há 10 anos, em 2005, eu estava almoçando em casa, por volta de meio dia e meu cachorro alertou, começou a latir, fui verificar e tinha um suspeito subindo a sacada do vizinho, vi pela parte de trás da minha casa. Como não dava tempo para telefonar, chamar a polícia, eu peguei minha arma, um revólver 38, e efetuei dois disparos para o chão. Nesse momento, o bandido fugiu, pulou da sacada porque viu que não teria êxito na sua tarefa. Meus vizinhos, um casal de idosos, não sabiam nem o que estava acontecendo, porque estavam almoçando também. A sacada estava aberta na parte de cima e, como é um sobrado, eles não sabiam o que estava acontecendo na parte de cima da casa. Por sorte, consegui impedir que o assaltante invadisse a casa do meu vizinho. Quando souberam ficaram agradecidos. Poderia ter sido muito pior. Joinville é uma cidade tranquila, foi a única vez que tive necessidade de usar a arma. Mas é bom poder tê-la. Com uma arma, o cidadão consegue se defender e tem duas oportunidades: chamar a polícia ou se defender no momento, porque muitas vezes o telefone não vai fazer a polícia se fazer presente no momento. Muitas vezes vai depender de outros fatores e a polícia não vai chegar em cinco minutos, em dois minutos. É uma alternativa para o cidadão se defender. Nem sempre eu preciso matar ou acertar alguém, a arma serve para defesa sem efetuar o disparo. Essa história de que mudar a lei vai aumentar o número de assassinatos é balela. Ter a arma não quer dizer que vai haver um bang bang na cidade nem que vá aumentar o número de vítimas. Roger Leye
45 anos, empresário

Por que manter o Estatuto
do Desarmamento?

A defesa do Estatuto do Desarmamento colocou do mesmo lado aliados improváveis, como o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) e o líder religioso pastor Silas Malafaia, além de nomes como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso; o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame; a ex-senadora Marina Silva; e o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL).

“A questão da arma de fogo não é uma questão conservadora ou progressista. Inundar a sociedade com armas de fogo é algo que diz respeito à segurança. E a segurança não é nem de direita nem de esquerda, é uma questão que envolve a vida das pessoas, independentemente da sua orientação política”, avalia o diretor executivo do Instituto Sou da Paz, Ivan Marques.

Para os defensores da atual legislação de controle de armas, as mudanças no estatuto representam um retrocesso e um risco aos avanços obtidos em 12 anos de implementação, como as 160 mil mortes evitadas no período, segundo projeções do Mapa da Violência de 2015.

“A gente volta a uma situação anterior a 2003, em que pessoas andavam armadas porque conseguiam uma licença facilmente com um delegado de polícia. O estatuto tem como premissa o porte arma como exceção. A nova lei transforma essa exceção em regra e isso é um absurdo para a segurança pública, uma vez que você inunda a sociedade com armas de fogo”, pondera Marques.

Os que defendem o estatuto têm a seu favor um arsenal de pesquisas e estudos que mostram a efetividade de uma lei anti-armas mais rígida e alertam para o risco de violência associado à maior quantidade de armas de fogo em circulação.

No Mapa da Violência de 2015, por exemplo, o pesquisador e sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz chegou à conclusão que 160.036 vidas foram poupadas com o maior controle de armas decorrente do estatuto.

O indicador de morte evitadas é calculado pela comparação entre a tendência de crescimento de morte violentas antes da lei e os números reais de ocorrências após a implementação do estatuto.

Na série histórica de morte por armas de fogo do estudo (1980-2012), o ano de 2004, primeiro após a entrada em vigor da lei, registra a primeira queda no número de homicídios por disparos após dez anos de crescimento ininterrupto.

“Policial que passou por cargo de gestão e tem experiência é a favor do controle. Sabe que é mais fácil trabalhar em um ambiente onde quem estiver armado é criminoso, portanto poderá ser detido e poderá ser julgado. Liberar para todo mundo andar armado dificulta o trabalho da polícia”

Renato Sérgio de Lima, vice-presidente do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Já no estudo Mapa das Armas de Fogo nas Microrregiões Brasileiras, o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Daniel Cerqueira concluiu que o aumento de 1% na quantidade de armas de fogo em circulação eleva em até 2% a taxa de homicídios. Dados da Organização das Nações Unidas mostram que, enquanto no mundo as armas de fogo estão associadas a 40% dos homicídios, no Brasil, os disparos são responsáveis por 71% dos casos.

“Revogar o Estatuto do Desarmamento é uma proposta não só reacionária, mas completamente desvinculada de qualquer critério técnico, porque todos os dados, evidências, mostram que mais armas significam mais mortes”, acrescenta o vice-presidente do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima.

Para além das conclusões teóricas sobre armas de fogo e violência, Lima destaca que quem lida com a segurança pública na prática também defende mais controle no acesso às armas.

“Policial que passou por cargo de gestão e tem experiência é a favor do controle. Sabe que é mais fácil trabalhar em um ambiente onde quem estiver armado é criminoso, portanto poderá ser detido e poderá ser julgado. Liberar para todo mundo andar armado dificulta o trabalho da polícia”, compara.

Em outubro, após a votação do texto-base do Estatuto do Controle de Armas, o fórum se manifestou contrário às mudanças em um documento com mais de 80 assinaturas, entre elas as de comandantes-gerais de polícias e delegados.

Desde a implementação em 2003, o Estatuto do Desarmamento foi alvo de quase uma dezena de tentativas de alteração por meio de projetos no Congresso Nacional. O perfil mais conservador da atual legislatura e a composição pró-armas da comissão especial – na qual sete dos 54 deputados receberam recursos de campanha da indústria de armas – favoreceram a aprovação da lei que flexibiliza o controle da posse e do porte.

Assista à entrevista com Raul Jungmann (PPS-PE), presidente da Frente Parlamentar
pelo controle de armas, pela vida e pela paz.

Para se contrapor a essa ofensiva, 230 parlamentares se juntaram na Frente Parlamentar pelo Controle de Armas, pela Vida e pela Paz, presidida pelo deputado Raul Jungmann (PPS-PE). O grupo espera equilibrar a discussão das mudanças no estatuto no plenário da Câmara e barrar a influência da bancada da bala no debate.

“Quem defende a arma para si não se dá conta que todos vão se armar. Por exemplo, a juventude das periferias, que se sente tão marginalizada e tão sofrida, vai toda se armar; nos campos de futebol, nas festas, no trânsito, na rua, todos estarão armados. As pessoas pensam que arma é só para defesa, não, ela é para destruição e para conflito”, argumenta Jungmann.

“O estatuto é algo que foi feito ao longo de governos, não pertence a nenhum governo especificamente. É uma construção que veio da sociedade para o Congresso. É algo que a sociedade precisa se mobilizar para defender”, pondera.

Por que revogar o
Estatuto do Desarmamento?

O direito à autodefesa diante da incapacidade do Estado de garantir a segurança pública é uma das principais bandeiras dos defensores da revogação do Estatuto do Desarmamento. A lista dos que saem publicamente em defesa da flexibilização das regras é encabeçada por parlamentares da chamada bancada da bala e entidades civis criadas após a entrada em vigor da lei, considerada uma das mais rígidas do mundo no controle de armas.

Audiência pública em comissão especial da Câmara dos Deputados que aprovou o projeto de lei que revoga o Estatuto do Desarmamento (Foto: Wilson Dias/Arquivo Agência Brasil)

“O direito à defesa em nada tem a ver com fazer Justiça com os próprios meios, a liberdade de acesso às armas inclui o direito à defesa, mas não se resume a ela. O fato de o cidadão poder se defender não tira da polícia ou do Estado nenhum direito. Nenhum cidadão armado vai cumprir mandado de busca e apreensão, vai sair perseguindo bandido, vai fazer inquérito, vai fazer papel de polícia”, argumenta o presidente do Instituto de Defesa, Lucas Silveira. Criada em 2011, a entidade tem 130 mil associados e atua no lobby pró-armas no Congresso e nas redes sociais.

“Por mais policiamento que se tenha, por maior que seja o Estado, a polícia não vai estar presente em todos os lugares do país, é matematicamente impossível”, calcula.

Segundo o presidente do Movimento Viva Brasil, Bene Barbosa, diante da deficiência das forças policiais em conter a violência e das falhas da Justiça em punir os criminosos, o Estatuto do Desarmamento tirou do cidadão a “última possibilidade” de se defender, com a restrição do acesso às armas.

“Quando o estatuto foi implantado em 2003, a gente já apontava que a lei não teria eficácia na redução de homicídios, da criminalidade violenta como um todo, pelo contrário, poderia trazer efeito inverso do que foi prometido, uma vez que traria uma sensação de segurança maior para o criminoso. O bandido entendeu esse estatuto e as campanhas voluntárias de entrega de armas de fogo como símbolo de que sociedade estava se rendendo”, compara.

Para o grupo pró-armas, a necessidade de revisão do estatuto é “urgente” e atende ao desejo da população manifestado desde o referendo sobre comércio de armas de 2005, em que a maioria dos brasileiros votou pela manutenção do comércio de armas e munição no Brasil.

“O estatuto foi aprovado em menos de seis meses, foi de má-fé, de ardil, se não o povo não tinha deixado”, avalia Silveira, do Instituto Defesa. “No referendo, o cidadão disse que não queria que o comércio fosse proibido. Ainda assim, ano após ano, as medidas, especialmente do Executivo, passaram a recrudescer a legislação de armas, indo de encontro ao interesse público”.

Assista à entrevista com Alberto Fraga (DEM-DF), presidente da Frente Parlamentar da Segurança Pública

Os defensores do Projeto de Lei 3.722/2012 argumentam que a proposta ainda é bastante restritiva no que diz respeito ao controle de armas no Brasil. Umas das principais lideranças da bancada da bala e coronel da reserva da Polícia Militar o deputado Alberto Fraga (DEM-DF) diz que, ao reduzir a burocracia e a subjetividade na concessão de licenças de armas, a mudança no estatuto vai permitir inclusive que o Estado tenha mais informações sobre a quantidade de armas existentes no país.

“Se sou governante, prefiro saber quantas armas meu país tem, de forma legal. A ideia é criarmos instrumentos de controle e que o governo federal saiba onde estão essas armas. Hoje ele não sabe, não tem noção de quantas armas existem no país. Há 12 anos o estatuto está em vigor e não se tem esse controle, então para que está servindo? Para nada”, critica.

Para Silveira, a proposta em tramitação na Câmara é “um meio termo” entre a liberdade de armas e o controle do atual estatuto, porque mantém algumas exigências para a compra e o porte, como laudo psicológico e curso básico para uso dos equipamentos. O ativista reconhece que a quantidade de armas em circulação no país poderá aumentar com a flexibilização da lei, mas diz que essa relação não é direta. “As pessoas não vão ser obrigadas a comprar armas, compra quem quer. Não é porque tem esse direito que ela vai necessariamente exercê-lo.”

“Não dá para dizer que vamos ter uma lei que vai permitir que todo mundo tenha arma, que você vai poder comprar arma na banca de jornal e munição na padaria, isso não é verdade, a ideia é modernizar, trazer uma lei que atenda mais às necessidades da sociedade”

Bene Barbosa, presidente do Movimento Viva Brasil

“Não dá para dizer que vamos ter uma lei que vai permitir que todo mundo tenha arma, que você vai poder comprar arma na banca de jornal e munição na padaria, isso não é verdade, a ideia é modernizar, trazer uma lei que atenda mais às necessidades da sociedade”, acrescenta Bene Barbosa.

Na avaliação dos pró-armas, os grupos que fazem a defesa do desarmamento “fazem terrorismo” ao associar diretamente a quantidade de armas à evolução dos índices de criminalidade. Os armamentistas costumam citar casos como o da Suíça e dos Estados Unidos, que, apesar da grande quantidade de armas nas mãos de civis, têm índices de criminalidade muito inferiores aos do Brasil.

“Os desarmamentistas adoram fazer terrorismo dizendo que as brigas de bares, de trânsito vão ter arma de fogo, isso não acontece na prática. Até 2003, qualquer pessoa podia ter arma, inclusive porte, e isso era feito na Polícia Civil, ainda assim os índices de crime daquela época eram menores que os que a gente tem hoje”, avalia Silveira, sem considerar o crescimento populacional no período.

O grupo também questiona os dados de mortes evitadas pelo Estatuto do Desarmamento, calculados pelo Mapa da Violência de 2015, segundo o qual mais de 160 mil vidas foram poupadas por causa da restrição às armas no país. “Quero conhecer essa cartomante ou essa vidente que disse que o estatuto evitou essas mortes, não tem cabimento. E ainda tem uma questão óbvia: dentro dessas mortes que eles anunciam, estão as mortes, na maioria, de bandidos. Bandidos que matam cidadãos de bem. Os casos de mortes de pessoas do bem são insignificantes”, avalia o deputado Alberto Fraga.

Apoiadas no argumento de que há “um clamor popular” por liberalização da legislação brasileira anti-armas, posições como a de Fraga, de outros deputados da bancada da bala e de grupos favoráveis ao armamento privado ganham força nas redes sociais. “Quando comecei nesse debate em 1995, 1996, era o malvado, o vilão, era visto como o cara que queria armar criancinhas, que não estava nem aí para tiroteio em escola. Mas isso mudou muito, nas redes sociais fica mais do que claro que isso inverteu, hoje estamos numa posição muito mais confortável. Hoje ter uma posição a favor do desarmamento é muito mais desgastante do que o contrário”, compara Barbosa, do Movimento Viva Brasil, que roda o país em conferências e entrevistas em defesa da posse e do porte de armas.

Próximos passos

Debate sobre mudança no Estatuto do Desarmamento será mais equilibrado no Senado

Na votação do texto-base, o Projeto de Lei 3722/2012, que revoga o Estatuto do Desarmamento, foi aprovado por 19 votos a 8 na comissão especial criada para debater a proposta na Câmara dos Deputados. No entanto, a diferença ampla de placar e o ambiente favorável à aprovação de uma nova legislação de armas não devem se repetir no plenário da Casa nem no Senado, para onde deve ser encaminhado caso passe pelo crivo dos deputados.

“Foi uma comissão
montada para dar vitória
ao desfiguramento do estatuto”

Raul Jungmann (PPS-PE)


Os defensores da manutenção do estatuto avaliam que a composição da comissão especial foi pensada para garantir a revogação da lei. “Foi uma comissão montada para dar vitória ao desfiguramento do estatuto”, avalia o deputado Raul Jungmann (PPS-PE), presidente da Frente Parlamentar pelo Controle de Armas, pela Vida e pela Paz, criada para se contrapor às mudanças na lei.

Dos 54 integrantes do colegiado, entre titulares e suplentes, pelo menos sete receberam doações de campanha da indústria de armas em 2014, segundo levantamento da organização não governamental Instituto Sou da Paz, com base em dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Entre os beneficiados, está o presidente do colegiado, deputado Marcos Montes (PSD-MG), que recebeu R$ 15 mil da Taurus e R$15 mil da Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), segundo o TSE.

Uma das maiores lideranças da chamada “bancada da bala”, o deputado Alberto Fraga (DEM-DF), que também integra a comissão, recebeu R$ 80 mil da Taurus, segundo a prestação de contas oficial. Apesar dos repasses para os parlamentares, Fraga diz que o patrocínio da indústria bélica não influencia a atuação dos deputados na discussão sobre a legislação de armas. “Você acha que uma campanha de deputado federal custa R$ 60 mil? Como é que alguém pode dizer que eu sou bancado pela indústria bélica porque ela me deu 60 mil?”, argumenta.

“As doações para os deputados estão lá declaradas, R$ 30 mil, R$ 40 mil, R$ 50 mil, não tem nada escondido. Agora, cadê o dinheiro que se gasta nessas campanhas de desarmamento? Disso ninguém fala”

Alberto Fraga (DEM-DF)


“As doações para os deputados estão lá declaradas, R$ 30 mil, R$ 40 mil, R$ 50 mil, não tem nada escondido. Agora, cadê o dinheiro que se gasta nessas campanhas de desarmamento? Disso ninguém fala”, questiona.

Além dos beneficiados diretamente pela indústria bélica, outros integrantes da comissão se identificam abertamente como representantes da bancada da bala, como o relator do projeto, deputado Laudívio Carvalho (PMDB-MG). Antes de ser eleito parlamentar, Carvalho comandou por quase uma década o programa policial Itatiaia Patrulha, onde ficou conhecido como “a voz da segurança”.

Em lados opostos, Fraga e Jungmann concordam que, no plenário da Câmara, os defensores da flexibilização da lei de armas terão mais dificuldades em aprovar o texto. No Senado, a situação poderá inclusive se reverter, já que o presidente da Casa, senador Renan Calheiros (PMDB-AL), é contra a liberação de armas e foi um dos articuladores do Estatuto do Desarmamento quando era ministro da Justiça do presidente Fernando Henrique Cardoso.

“A gente sabe que o Renan Calheiros vai fazer de tudo para não votar o projeto no Senado”, avalia Fraga. Segundo ele, o grupo de deputados pró-armas poderá voltar atrás em alguns pontos do projeto para facilitar a aprovação, entre eles o trecho que permite que pessoas que estão respondendo a processo ou inquérito tenham direito a comprar uma arma.

As organizações da sociedade civil que defendem o Estatuto do Desarmamento também apostam em outro cenário nos próximos passos da tramitação do projeto no Congresso. Para o diretor-executivo do Instituto Sou da Paz, Ivan Marques, o ambiente será mais equilibrado fora da comissão especial.

“Quando esse projeto chegar ao plenário esperamos uma discussão mais aberta, mais franca e mais equilibrada para que todas essas questões absurdas aprovadas pela comissão possam ser revistas, esse avanço para revogação do estatuto possa ser brecado e o processo se interrompa ainda na Câmara.”

O vice-presidente do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, diz que as entidades anti-armas continuarão trabalhando para o convencimento dos parlamentares contra a revogação do estatuto, e não descarta recorrer à presidenta Dilma Rousseff para pedir o veto, caso a lei seja aprovada, e até ao Supremo Tribunal Federal. “Essa lei pode ser questionada no STF, já que a Constituição protege a vida e essa lei claramente não vai nessa direção”, avalia.

Já o presidente do Instituto Defesa – favorável à ampliação do acesso a armas – Lucas Silveira, espera uma vitória com “votação razoavelmente equilibrada” no plenário da Câmara, mas também reconhece que no Senado o ambiente será menos favorável aos armamentistas. “No Senado a gente deve ter uma dificuldade maior, uma vez que um dos idealizadores do estatuto é o Renan Calheiros, que hoje preside a Casa. Tenho certeza que ele vai fazer o possível e o impossível para evitar esse atendimento aos anseios populares”, avalia.

Vontade popular

O referendo de 2005 e a tentativa de proibir o comércio de armas no Brasil

Quando foi implantada em 2003, a Lei 10.826, conhecida como Estatuto do Desarmamento, previa a realização de um referendo para consultar a população sobre a proibição do comércio de armas no Brasil. A medida estava prevista no Artigo 35, mas dependia da aprovação popular para entrar em vigor.

O primeiro referendo da história do Brasil perguntou aos eleitores: “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”. As campanhas do “Sim” e do “Não” mobilizaram o país, com a participação de entidades da sociedade, igrejas, organizações não governamentais, artistas, intelectuais e políticos. No Congresso Nacional, formaram-se frentes parlamentares pró e contra a proibição do comércio de armas. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou voto pelo “Sim”.

De um lado, os defensores do “Sim” argumentavam que a proibição reduziria as mortes por armas de fogo, os acidentes e os índices de violência. Financiada pela indústria de armas, a campanha do “Não” ressaltava o direito à autodefesa do cidadão.

Após 20 dias de horário obrigatório na televisão e no rádio, mais de 95 milhões de brasileiros foram às urnas, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A votação registrou abstenção de pouco mais de 21%, semelhante ao percentual do segundo turno da eleição presidencial de 2002 (20,45%).

Com 63,94% dos votos, o “Não” saiu vitorioso e os brasileiros decidiram que o comércio de armas de fogo e munição no Brasil deveria ser mantido, dentro das regras previstas em outros artigos do Estatuto do Desarmamento. O “Não” venceu em todas as regiões e todos os estados do país. A diferença para o “Sim”, que recebeu 36% dos votos, passou de 27 pontos percentuais.

Com a rejeição da proibição, o Estatuto do Desarmamento continuou em vigor, mas sem prever a restrição total ao comércio de armas no país.