• Cidade de Goiás – A imponente casa que se ergue à beira do Rio Vermelho chama a atenção de quem conhece a antiga capital do estado de Goiás. Tanto a cidade quanto a casa encantaram a menina que nasceu ali em agosto de 1889, mas não foram suficientes para a mulher em que ela se transformou. Para se livrar do conservadorismo imposto às mulheres à época, ela se desprendeu das raízes e deixou o lugar em que cresceu para buscar os seus sonhos. A menina Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas se transforma, por sua vida e genialidade, em Cora Coralina, a poetisa de Goiás.

    Apesar de passar boa parte da vida fora da cidade, Cora renasce como poetisa quando volta a Goiás, 45 anos depois, e coloca em seus versos as durezas do que viveu. “A cidade e sua gente estão presentes na poesia. Aquilo que a gente vê claramente é essa recuperação da memória, ela fala no tempo presente, mas recuperando aquilo que ela viveu, passando a limpo para que os jovens não caiam nos mesmos erros”, explica a professora de literatura da Universidade Federal de Goiás (UFG) Goiandira de Fátima Ortiz de Camargo, lembrando que a jovem se sentiu pressionada a deixar aquele local.

    Segundo a diretora do museu Casa de Cora Coralina e amiga da poetisa, Marlene Vellasco, a menina Ana teve vida curta. “Ela cria esse pseudônimo aos 14 anos e o assume. A Ana fica esquecida no passado, a menina feia, de pouco cabelo, a bobona da casa. Ela se assume como Cora Coralina que é um nome forte que significa coração vermelho, em homenagem ao rio”, explicou Marlene.

    Há 30 anos, em 10 de abril de 1985, Cora Coralina morreu em Goiânia, por complicações de uma pneumonia. Filha de um desembargador e de uma dona de casa, ela passou sua infância e adolescência na velha casa da ponte, às margens do Rio Vermelho, transformada hoje em museu.

    Cora se apaixona pelo advogado e chefe de polícia, Cantídio Tolentino de Figueiredo Bretas, e deixa Goiás com ele, em 1911, já grávida de gêmeos – os dois primeiros de um total de seis filhos. Cantídio era casado e, como na época não existia o divórcio, eles só puderam oficializar a união em 1925, quando ele ficou viúvo. Ela cria os quatro filhos que sobrevivem no estado de São Paulo e, após a morte do marido, atua em várias atividades para sustentar a família. Foi vendedora de livros e trabalhou na roça. Com os filhos crescidos, Cora resolve retomar sua vida e, em 1956, volta à cidade de Goiás.



    “Durante esse tempo fora, ela foi construindo seu percurso de mulher e continuou com uma vida social muito intensa. A parte do casamento não fica clara na poesia dela, esse período é um hiato dentro da obra de Cora. O máximo que ela fala na poesia é que ela esperava um príncipe e que caiu na rede um peixe de escamas prateadas, mas esse peixe teria muitos espinhos também. Então, a partir do momento que ela não fala sobre essa relação, vamos percebendo que ela sempre esteve muito só nas suas escolhas”, explicou a professora de literatura da Universidade Estadual de Goiás (UEG) Ebe Maria de Lima Siqueira.

    Moradora da cidade de Goiás, Antolinda Baia Borges, 82 anos, foi amiga da poetisa e esteve com ela até o fim da vida. A empresária conta que conheceu Cora quando ela voltou de São Paulo. “Para mim, Cora foi uma pessoa muito forte, destemida e corajosa. Quando, em Goiás, as mulheres não podiam nem assistir procissão, Cora teve coragem de montar na garupa de um homem casado e ir embora. E quando voltou também foi de repente e foi uma surpresa porque a imagem que tínhamos era daquela mulher que fugiu para casar”, disse.

    A amiga conta que, quando o poeta Carlos Drummond de Andrade exaltou a poesia de Cora Coralina, em 1980, em um artigo no Jornal do Brasil, lançando a poetisa na literatura brasileira, isso não subiu à cabeça de Cora. “Ela continuou na mesma humildade, na mesma pobreza, morando na mesma casa, com as paredes escoradas com pau. Ela fazia doces para custear a vida. Ela sentiu orgulho daquilo, mas sem um pingo de vaidade.”

    Para a professora e diretora do campus da UFG da cidade de Goiás, Maria Meire de Carvalho, Cora Coralina é um exemplo de emancipação para as mulheres. “Falta às mulheres essa ousadia, essa coragem. Cora fez autodenúncia na poesia. Isso é o que precisamos fazer, sem ficar preocupadas com rótulos. 'Não tenham medo das pedras que te jogarão', Cora dizia isso.”

    Segundo Antolinda, Cora pedia pouco e se doava muito para as pessoas, tinha uma personalidade forte, até autoritária, e uma força de vontade incrível. Era uma mulher forte e libertária e traduzia essas questões para os textos que escrevia. “Quando se pensava que não, ela estava ali no meio daquela balburdia ou no fundo do quintal colhendo seus mamões. Cora tinha um conhecimento nato, o grande amor da vida dela foi a poesia”, lembra a amiga.





    “Minha infância freudiana é um dos poemas mais dolorosos que Cora escreveu, gosto muito dele.”

    Goiandira de Fátima Ortiz de Camargo, professora de literatura da Universidade Federal de Goiás (UFG)




    “O poema Minha Cidade é muito representativo, é um canto de repertencimento à cidade. Cora volta [à cidade de Goiás, em 1956] e quer reconstruir a imagem da cidade pela memória, quer voltar a pertencer a essa cidade da qual um dia saiu de maneira difícil. Quando você compreende e situa esse poema na vida de Cora Coralina ele é extremamente dolorido. Tem uma dimensão quase trágica, no sentido de que 'eu estava aqui vivendo em harmonia e, de repente, sou estapeada daqui, porque não posso viver de acordo com meus ideais'. E agora ela está voltando. E, por mais que isso seja difícil, é desse lugar que ela vai falar, dessa casa velha da ponte, inserida nessa cidade.”

    Goiandira de Fátima Ortiz de Camargo, professora de literatura da Universidade Federal de Goiás (UFG)




    “Humildade é um poema parecido com Cora. Ela é agradecida pela cama pobre, pela casinha, por acender ela mesma o fogo eterno da vida. Ela dá exemplo, porque às vezes ficamos correndo atrás de tanta coisa, coisas materiais, achando que vão nos realizar. E ela está dizendo 'não, a felicidade não depende disso'. A nossa felicidade é poder ter autonomia de poder erguer a nossa casa e acender o próprio fogo. Você não pode estar acomodado na lareira que outro acendeu pra você.”

    Ebe Maria de Lima Siqueira, professora de literatura da Universidade Estadual de Goiás (UEG)




    “Como mulher me sinto muito contemplada em Todas as vidas. É um poema em que ela emana todas nós em uma só mulher. Acho bonito o fato de ela se pronunciar como alguém que faz a defesa da mulher da vida. Talvez até por isso ela seja criticada até hoje pelos conservadores, porque ela põe a mulher da vida como sua própria irmã.”

    Ebe Maria de Lima Siqueira, professora de literatura da Universidade Estadual de Goiás (UEG)




    “Ela tem poemas fantásticos, cada um deles com uma história. Fiquei muito impressionado com Menor Abandonado.”

    Paulo Sérgio Bretas de Almeida Salles, neto de Cora Coralina




    “Quando ela quebrou o fêmur, ela poderia ter reclamado por te caído, de estar dependente de uma muleta. Mas ela faz uma ode à muleta, como a muleta a fez dar a volta ao mundo sem sair da casa. Ela usava esses objetos que serviam de apoio não para se menosprezar. Ela exalta a importância dessa muleta na sua vida”

    Marlene Vellasco, diretora do Museu Casa de Cora Coralina e amiga da poetisa




    “Ela escreveu Mulher da Vida em contribuição ao Ano Internacional de Mulher, em 1975. Ela tem um apreço que ainda hoje é negado às mulheres públicas, às vagabundas, às vadias. Acredito que é um marco de rompimento, de ousadia. Penso que ela não tinha mais nada a temer quando o escreve. Depois dos 40 anos a gente tem uma coragem, uma ousadia que te empodera. Ela não estava preocupada com mais nada”

    Maria Meire de Carvalho, diretora da Universidade Federal de Goiás, campus da cidade de Goiás, doutora em gênero e estudos feministas pela Universidade de Brasília




    “Sempre que alguém pedia a ela para declamar um poema de sua preferência, ela dizia 'eu não vou declamar o que eu gosto, mas vou declamar o que minha amiga gosta'. Ela escreveu Estas mãos na época em que São Paulo pedia ouro para o Brasil [conhecida como campanha 'Ouro para o bem de São Paulo', durante a Revolução Constitucionalista de 1932]. Ela tirou as alianças, derreteu e deu ouro ao Brasil. Esse poema diz tudo sobre ela”

    Antolinda Baia Borges, amiga de Cora Coralina




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