A construção de um país

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golpe de 1964 interrompeu uma democracia nascida 18 anos antes, em 1946, quando tomou posse Eurico Gaspar Dutra, presidente eleito pelo voto direto. Aquele país redemocratizado, que emergiu da queda do Estado Novo, era marcado por desigualdades ainda maiores que as de hoje, mas tinha como traço uma sociedade criativa e confiante, que buscava entender os dilemas brasileiros e apontava para um futuro otimista.

Foi uma época em que os brasileiros superaram aquilo que o escritor Nélson Rodrigues definia como “complexo de vira-latas”, uma “inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”. Seja por imagens estereotipadas, como a da baiana colorida de Carmen Miranda e da favela romântica de Orfeu Negro, que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1960, ou pela sofisticação da construção de Brasília, o fato é que o Brasil era moda no mundo.

O desempenho econômico dessa democracia também foi marcado pelo otimismo. O crescimento nos 18 anos que antecedem o regime militar foi o maior da história do país, resultado do chamado nacional-desenvolvimentismo, que se baseava na política de substituição de importações. Entre 1946 e 1963, o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), soma de todas as riquezas do país, chegou a 7,12% - maior que o do regime militar, que alcançou 6,29% no período 1964-1984, apesar do chamado “milagre econômico”.

Mas Que Nada foi o sucesso do disco

A democracia brasileira do pré-golpe nasceu promissora, graças a uma Constituição arrojada, que trazia garantias políticas e sociais comparáveis às atuais. A conquista, entretanto, foi fragilizada por um ambiente internacional de confronto entre as duas superpotências que emergiram da 2ª Guerra Mundial, os Estados Unidos e a União Soviética. Ao longo de 18 anos de democracia, crises sucessivas marcaram o ambiente político do país e criaram parte do clima necessário para a eclosão do golpe de 1964.

Nos meses que antecederam o golpe, no entanto, nada indicava que o Brasil estaria prestes a ver derrubada a democracia que começou a ser construída em 1946. Os jornais publicavam manchetes fortes, contrárias ao governo de João Goulart (Jango), mas em cenário que parecia repetir tantas outras crises daquela época. Na cultura, fazia sucesso o disco Samba Esquema Novo, de Jorge Ben Jor (que ainda usava o nome Jorge Ben), considerado esteticamente revolucionário, mas o golpe já estava a caminho.

A Democracia de 18 anos nasce, cresce e morre em um ambiente internacional marcado pela disputa da guerra fria

A derrocada da cidadania

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o dia 31 de março, os tanques do general Olímpio Mourão tomam a estrada rumo a Brasília, encerrando o curto período democrático vivido pelo país. Finalmente, o grupo militar golpista conseguia apoio político e social para consumar a derrubada de João Goulart (Jango), um alvo escolhido desde a renúncia de Jânio Quadros, em 1961. No dia 2 de abril, com Jango fora de Brasília, a vacância de mandato é anunciada. Começa, então, a era de generais e militares que se alternam no poder em um regime autoritário que durou 21 anos.

A conspiração para a derrubada de Jango teve grande participação dos Estados Unidos, o que incluiu desde o envio de recursos para financiar institutos de propaganda anticomunista e bancar a eleição de parlamentares pró-interesse norte-americano até o envio de uma frota naval para o litoral brasileiro, a fim de dar suporte ao golpe militar, caso fosse necessário.

A divulgação, pela Casa Branca, de gravações de conversas entre o ex-presidente John Kennedy e o então embaixador dos Estados Unidos (EUA) no Brasil Lincoln Gordon comprovam a preocupação da maior potência do mundo com o caminho de reformas sociais e econômicas que vinha sendo trilhado pelos brasileiros em sua incipiente democracia.

Lema do governo militar dividia o país

Com o golpe, inicia-se um período de cassações, exílios, prisões, assassinatos e desaparecimentos. É a fase do Brasil, Ame-o ou Deixe-o, que divide o país e instaura a desconfiança sobre os que criticavam o governo e que, por isso, não seriam considerados patriotas. De acordo com a Comissão Nacional da Verdade, cerca de 50 mil pessoas tiveram a cidadania diretamente violada durante o período.

A Rádio Nacional, mais influente veículo de comunicação do país à época, foi duramente atingida. Nos dias do golpe, abriu os microfones para discursos em defesa da democracia, foi invadida pelos militares e teve 36 artistas e jornalistas demitidos.

Ao mesmo tempo em que perseguia os opositores, o regime militar constrói um modelo político para se legitimar. Essa “democracia” tinha dois partidos e a oposição era sempre impedida de ganhar. As regras eram alteradas sempre que houvesse risco eleitoral e a maioria da população só votava para o Legislativo, um Poder que não tinha independência: quando desobedecia às imposições do regime, era fechado.

Era também o tempo das cassações de mandato dos principais adversários e de iniciativas exóticas, como o senador biônico – eleito indiretamente, para garantir a maioria no Senado da época – e a Lei Falcão, que admitia apenas a foto dos candidatos na propaganda eleitoral da televisão.

O apelido “senador biônico” remetia à série O Homem de Seis Milhões de Dólares, um grande sucesso da TV na época. O personagem principal da série era um militar gravemente acidentado que foi reconstituído com poderes especiais, tornando-se “o homem biônico”. Como ele, o senador biônico também era “fabricado em laboratório”, segundo os críticos.

Durante certo tempo, o regime militar também se sustentou no crescimento econômico que ocorreu nos anos seguintes ao golpe e que retomou o desempenho alcançado durante os 18 anos de democracia. Foi, entretanto, um crescimento concentrador de renda e baseado em grande endividamento externo (a famosa dívida externa) que logo apresentou a conta. Após os choques do petróleo de 1973 e 1979, com a subida dos juros internacionais, a dívida brasileira explode e, sem conseguir honrar suas contas, o Brasil entra em moratória em 1982, agravando mais ainda a situação dos pobres. É o começo do fim da ditadura.

Ao mesmo tempo em que perseguia os opositores, o regime militar constrói um modelo político para se legitimar

A retomada da esperança

Atrizes protestam nas ruas
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Brasil já estava sob comando dos militares há quase 20 anos quando a insatisfação da população irrompeu. Paulatinamente, as ruas foram tomadas por protestos que cobravam eleições diretas e o fim da ditadura. Às greves dos operários do ABC Paulista (região formada pelos municípios de Santo André, São Bernardo e São Caetano, cidades tradicionalmente industrializadas na periferia da capital paulista) se segue a campanha das Diretas Já!

Mesmo 29 anos após a queda da ditadura e da implantação da Nova República, o golpe de 1964 ainda é um problema mal resolvido na sociedade brasileira. Não há acordo, nem mesmo, sobre a data efetiva do golpe, e a escolha do dia varia de acordo com a posição favorável ou contrária ao regime instalado. É um problema que os militares temeram desde o início: evitar que a data entrasse na história como 1º de abril, dia da mentira.

Outro problema é a percepção dos brasileiros sobre a importância dos valores democráticos, mesmo 29 anos após a queda da ditadura. A democracia é o regime de governo que permite às pessoas participarem das decisões sobre seu futuro, respeita a diferença de opinião da minoria, garante aos empresários mais previsibilidade para os investimentos e distribui melhor os ganhos econômicos da sociedade.

A percepção desses benefícios faz com que a crença dos brasileiros nos valores democráticos venha crescendo desde o fim do regime militar. No entanto, ainda é uma das mais baixas da América Latina. Para pesquisadores, os brasileiros querem mais democracia, mas os efeitos econômicos do regime democrático, mesmo importantes, ainda não mudaram a estrutura do Brasil, um dos países mais desiguais do mundo.

Falando em democracia

João Vicente Goulart
Filho do presidente deposto com o golpe
militar de 1964, João Goulart (Jango)
"O mais importante hoje, quando se fala dos 50 anos do golpe, é preservamos a nossa democracia. Hoje vivemos um período de mais de 25 anos de uma democracia constante, superando, inclusive, no seu primeiro teste, o impeachment de um presidente. Precisamos polir o nosso processo democrático e de liberdade. O processo de liberdade não se dá somente no sentido do ir e vir do cidadão. Ele se dá quando toda a sociedade tem a possibilidade de construir uma vida digna, patriótica e as oportunidades são igualmente divididas."
Clarice Herzog
Viúva do jornalista Vladimir Herzog, torturado e morto
pelo regime militar nas dependências do DOI-CODI em 1975
"É assustador constatar que mais da metade da nossa população acredita que um governo autoritário pode ser preferível a um democrático, ou então que democracia ou autoritarismo, tanto faz como tanto fez. Quem, como eu e minha família, sofreu pessoalmente o que de pior uma ditadura pode perpetrar, não consegue conformar-se com isso – uma atitude que demonstra o completo desconhecimento sobre os males de um regime totalitário – um regime que não deve satisfação a ninguém. A pior democracia, a mais imperfeita, é melhor que qualquer ditadura. Sempre. Pelo menos, temos a liberdade de protestar, gritar, dizer não, mesmo que ninguém nos ouça."
Ferreira Gullar
Poeta e cronista, ex-militante do Partido
Comunista Brasileiro, foi exilado pelo regime militar
"Nós, os mais idosos, que tínhamos vivido os anos de democracia - não muitos, é verdade - sentimos talvez mais dolorosamente o regime autoritário iniciado em 1964 e agravado, em 1968, com o Ato Institucional 5. De qualquer modo, os mais jovens, à medida que tomavam consciência do que se passava no país, também sentiram o peso do autoritarismo. Essa lição, pelo menos, aprendemos: a ditadura não serve para nada, senão para tornar a vida pior. E que essa lição se mantenha viva em nossa memória: nenhum governo, por mais que prometa, vale o regime democrático."
Dalmo Dallari
Jurista, atuou na defesa de numerosos presos políticos, entre eles, dirigentes
do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, detidos em 1978
"Um dado importante para a compreensão da democracia consagrada na Constituição brasileira é o fato de que a ditadura empresarial-militar, que durou 21 anos, não foi extinta por meio de um movimento armado. Ela foi derrotada pelo povo organizado e mobilizado, utilizando meios pacíficos. É absolutamente equivocado confundir o desinteresse do povo pelas atividades político-partidárias com desinteresse pela democracia, que está consolidada e fica evidente pela expressiva redução dos desníveis sociais e pela intensa participação da cidadania na defesa de seus direitos fundamentais."
Rosa Maria Cardoso
Advogada criminalista, atuou em defesa de presos políticos no Rio de Janeiro, São Paulo e no Distrito Federal. É integrante da Comissão Nacional da Verdade
"A democracia é importante para o Brasil e para o mundo porque é o regime para onde convergem todos os valores que a civilização estabeleceu como importantes no exercício da condição humana: as liberdades que nós conhecemos, a participação de todo cidadão na vida política e social, a igualdade de oportunidades etc. O difícil é garanti-la e exercê-la efetivamente e não sermos complacentes e tolerantes com a regra de que os fins justificam os meios."
Audálio Dantas
Presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais
do Estado de São Paulo à época do assassinato de Vladimir Herzog
"O valor fundamental da democracia é a liberdade de expressão. A censura que prevaleceu durante o período militar foi um de seus pilares. Nenhuma ditadura persiste com o mínimo de liberdade de informação. A Constituição de 1988, a grande conquista do povo brasileiro na luta de resistência à ditadura, garante plenamente essa liberdade, sem a qual todas as demais sucumbem. Foi graças à censura aos meios de comunicação que a ditadura militar praticou a tortura e os assassinatos de centenas de brasileiros."

Expediente

Coordenação e edição de textos:
Davi Oliveira e Lílian Beraldo

Reportagem:
Alana Gandra, Bruno Bocchini, Danilo Macedo,
Iolando Lourenço, Ivan Richard e Wellton Máximo

Produção visual:
Arte DIJOR, Pedro Ivo de Oliveira
artedjor@ebc.com.br