Todas as descobertas científicas da humanidade nasceram da capacidade de observar. Em tempos remotos, testemunhamos fenômenos da natureza, comportamentos e interações básicas entre os elementos. Com o tempo, dominamos o fogo, conquistamos os mares, entendemos a dinâmica dos ventos. A humanidade construiu, ao longo da história, maneiras criativas e maravilhosas de enxergar o desenvolvimento e a composição do universo. E, em todas as vezes que demos grandes passos na direção do conhecimento, aumentamos ainda mais essa capacidade tão básica: a de ver o que estava o tempo todo na nossa frente.
A Agência Brasil visitou o Projeto Sirius - a mais ambiciosa estrutura científica do Brasil - para conhecer a tecnologia usada neste laboratório gigantesco que pode, facilmente, abrir as portas para as próximas grandes descobertas do homem.
O Sirius disputa o título de maior acelerador de elétrons do mundo, e seu principal objetivo é irradiar um feixe de luz especial, chamado de luz síncrotron, sobre matérias e moléculas diversas, orgânicas e inorgânicas. Na prática, é uma espécie de microscópio gigante que irradia uma luz muito difícil de ser produzida - que não é encontrada na natureza - e que permite testemunhar acontecimentos em escala subatômica.
O feixe de luz produzido no Sirius
A chamada “luz visível” - aquela que os olhos humanos conseguem captar e transformar em informações processadas pelo cérebro - é apenas uma pequena parte do espectro eletromagnético. A luz síncrotron é um fenômeno de alto fluxo e alto brilho que se estende por uma faixa ampla do fenômeno que dá origem à luz. Ela foi teorizada em 1944, na antiga União Soviética.
Compreender o funcionamento do imenso parque de máquinas instalado em Campinas (SP) talvez seja uma missão menos complexa do que entender a evolução que o Sirius representa para a ciência. E, claro, para a pesquisa brasileira - que luta para conseguir um lugar de destaque em um cenário mundial tão competitivo.
A história do imenso complexo que forma o Projeto Sirius começa com o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS). Idealizado na década de 1980 e inaugurado em 1997, o UVX - nome que faz referência à abrangência do espectro da luz síncrotron “do ultravioleta ao raio-x”- foi o primeiro acelerador de partículas do Hemisfério Sul.
Equipamento de “segunda geração”, o UVX permitiu que cientistas do Brasil e do mundo realizassem experiências e projetos com a utilização de luzes infravermelhas, ultravioletas e raios-x. Mas a construção não foi um processo fácil. Sérgio Rodrigo Marques, engenheiro eletricista e líder do grupo que faz a manutenção e o diagnóstico do feixe de luz síncrotron, entrou no projeto em 1994, quando ainda era estagiário. Ele testemunhou e participou da construção dos vários prédios que compõem o campus onde se encontra o Sirius e os demais laboratórios.
“Nessa época passávamos por um bocado de dificuldades. Para criar uma estrutura dessas [um acelerador linear de elétrons] assim, do nada, uma série de protótipos teve de ser feita. Vivíamos num esquema de construção de equipamentos. Todos os subsistemas para a emissão da luz síncrotron foram produzidos na raça, com conhecimento limitado, numa época em que a internet não existia. Você consegue imaginar algo assim?”, explicou com entusiasmo ao falar da experiência.
Antigamente acontecia muito de pegarmos o carro e irmos em lojas de componentes elétricos para comprar peças que seriam usadas em projetos de máquinas que nem sabíamos se iam funcionar. Era uma época de criatividade incrível. Eu pagava com dinheiro do meu bolso para tentar reembolso, mas nem sempre dava certo. Fazia pelo amor ao trabalho. Sérgio Rodrigo Marques, coordenador de Diagnóstico do Feixe de Luz Síncrotron
Na época da construção do UVX não havia nenhuma empresa especializada em construção de laboratórios em larga escala no Brasil. Marques relata que a demanda gerou um novo mercado. “Muitos dos problemas de longo prazo que o nosso acelerador apresentou surgiram pela falta de peças especializadas e sem procedência no mercado. Ainda assim conseguimos fazer ele funcionar em alto padrão, com 97% de aproveitamento. Hoje em dia temos toda uma indústria especializada em fornecer os melhores componentes e adaptá-los de acordo com a necessidade específica. Há 30 anos tínhamos apenas meia dúzia de engenheiros que conseguiam se comunicar de uma forma proveitosa com o pessoal estrangeiro para solucionar problemas técnicos.”
Marques, que ainda se diz maravilhado quando pensa na abrangência atual do Sirius, afirma que a experiência profissional adquirida pela equipe que trabalhou no UVX é inestimável, e que poucos países alcançaram um nível de especialização científica no elaborado processo da aceleração de elétrons como o Brasil. “lembro bem que após terminarmos o UVX, a Austrália tentou um processo semelhante. Eles compraram um acelerador parcialmente pronto, mas não tinham a expertise do entendimento dos subsistemas. Compravam peças prontas e não passaram pelo teste de fogo que passamos ao fazer o nosso do zero. A confiabilidade deles era bem inferior, porque, se algo quebrasse, demoravam semanas para esperar um engenheiro de outro lugar indicar os reparos necessários. Ninguém no mundo tem uma equipe como a brasileira”, explicou o engenheiro.
O que significa ter uma máquina tão avançada no Brasil?
A experiência de criação um acelerador de elétrons único no hemisfério foi significativa para os brasileiros envolvidos. Todo o conhecimento tecnológico empregado no Projeto Sirius é, em certa parte, herança da gigantesca experiência acumulada durante a época do primeiro acelerador, o UVX. Muitos veteranos, como Marques, estão profundamente comprometidos com a construção da nova fonte de luz síncrotron, que contará com 8 estações de pesquisa plenamente funcionais até o final de 2020, mas ainda em caráter de teste.
O Projeto Sirius representa o maior investimento brasileiro já feito em ciência e tecnologia. O custo total do laboratório é de R$ 1,8 bilhão. Qual é, afinal, a utilidade pública de um laboratório gigantesco, feito com as tecnologias mais modernas de construção e engenharia, equipado com ferramentas científicas a que pouquíssimos países têm acesso e com tantas técnicas multidisciplinares empregadas? Ter um laboratório assim realmente representa algum ganho para a sociedade?
Antônio José Roque da Silva, ou apenas Zé Roque, como é chamado pelos colegas, é o diretor do Projeto Sirius, e explica com facilidade os ganhos que o imenso laboratório traz.
“Uma fonte de luz síncrotron é evidência de uma economia moderna avançada. As aplicações industriais são importantes, mas o que conta [para um país em desenvolvimento] não é a aplicação em si, mas a construção do complexo instrumento científico [que a produz]. São milhares de técnicas desenvolvidas aqui sobre as quais não tínhamos domínio antes", pondera o físico.
O propósito do Projeto Sirius, segundo o diretor, não é apenas replicar experiências ou testes avançados em química e física, mas criar um polo de especialização em pesquisas científicas de ponta, o que deve colocar o Brasil no topo da disputa por grandes mentes.
"Criamos o desenvolvimento em vários fronts. Faremos análises sem precedentes no mundo. Estamos criando conhecimento, ao invés de simplesmente absorvê-lo. Seremos referência internacional de pesquisa científica”, conclui o diretor. Não é apenas o entusiasmo de estar envolvido no projeto que embasa os argumentos do diretor. O UVX, predecessor do Sirius, tem resultados palpáveis e aplicações práticas que já fazem parte de diversos setores da indústria e da medicina.
O Sirius permite observar todas as etapas de vida de células que se deterioram rapidamente fora de seu ambiente. Uma das pesquisas é sobre neurônios afetados por esquizofrenia. Com a observação, será possível entender como essas células se comportam e como reagem a medicamentos e substâncias. É possível que a cura para a doença seja descoberta.
Imagine uma técnica de extração de combustíveis fósseis em nível molecular. Ela será possível em breve, e é uma área de desenvolvimento que promete alavancar o Brasil no cenário internacional. Cientistas estudam como extrair microgotas de petróleo de rochas porosas que se encontram, por exemplo, no pré-sal. A técnica promete aumentar a produtividade da extração.
Outra pesquisa importante feita pelo Sirius é o armazenamento da energia gerada por células fotovoltaicas, os painéis solares. Esse tipo de energia ainda não possui uma forma eficiente de armazenamento, sendo utilizável apenas na presença da luz do sol. O Sirius busca materiais modernos que possam solucionar o problema. Baterias e fontes alternativas de combustíveis também são pesquisados.
O Projeto Sirius - nome que vem da estrela mais brilhante no céu noturno - caminha para se tornar uma espécie de farol para a ciência brasileira. A demanda criada pelo feixe de luz é tão especializada que exige diversos programas de computador especialmente desenvolvidos para operar as 200 mil variáveis que são calculadas a cada segundo. Tudo feito em código aberto, disponível de forma livre para a comunidade científica que opera máquinas semelhantes e possui as mesmas necessidades.
Engenheiros civis projetaram uma nova forma de construir blocos massivos de concreto que não vibram com a influência externa - uma das exigências para o alinhamento perfeito da luz síncrotron. A cúpula que protege o acelerador também contou com técnicas de engenharia inovadoras, criadas no Brasil, para ser erguida. O acelerador usa imensos eletroímãs para guiar o feixe de luz. E eles também são de autoria brasileira. O imenso maquinário gera altos níveis de radiação, que é controlada o tempo todo por médicos especialistas em contenção radiológica.
Tudo isso feito com incontáveis toneladas de concreto, quase mil toneladas de aço e mais de mil quilômetros de fiação. Milhares de computadores trabalham em sincronia perfeita para monitorar e executar todo o complexo framework (o sistema-mestre que gerencia os subsistemas) que gera a luz especial.
Apesar da vasta estrutura disponível para pesquisa, trabalhar no LNLS não é nada fácil. Túlio Costa Rizuti da Rocha, que trabalha como pesquisador no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), estudava física na Universidade de Campinas (Unicamp) e foi orientado por um professor que atiçou seu interesse pela investigação científica. Após receber uma bolsa no laboratório, o jovem entrou em um programa que se estendia até o doutorado na Unicamp. A parte prática de seus estudos era realizada no campus do LNLS, onde futuramente seria construído o laboratório dos sonhos do pesquisador.
Mas era necessário buscar meios em países com fontes de luz síncrotron mais avançadas. Foi aí que Rocha ouviu um conselho amigável de um dos diretores do Projeto Sirius. “Saia do país e volte como um especialista de algo que não temos aqui. Algo diferente das pesquisas que desenvolvemos. Depois volte ao Brasil e seja o melhor nessa área”. E ele correu atrás do conhecimento. O jovem cientista partiu para a Alemanha, onde trabalhou durante cinco anos em um síncrotron de 3ª geração. Até voltar ao Brasil e conseguir uma vaga no Sirius, foram 11 anos de aprimoramento e estudos.
Após um processo seletivo, entrevistas e análises de currículo, Rocha conseguiu trazer a pesquisa que desenvolvia na Alemanha para o Brasil. Hoje, Rocha aguarda ansiosamente o comissionamento total do acelerador de elétrons de quarta geração brasileiro, que deve acontecer no primeiro semestre de 2020. “A inauguração do Sirius significa tudo para mim. São cinco anos de trabalho em um projeto para desenvolver esse novo instrumento. Isso vai possibilitar fazer uma pesquisa que não era possível antes, em nenhum lugar do mundo”, esclarece.
Sobre o fato de ser um brasileiro fazendo pesquisas em países tecnologicamente mais avançados, Rocha afirma categoricamente: “O motor da sociedade moderna é a inovação. Inovação melhora a qualidade de vida das pessoas. Estamos em uma espécie de ‘nova corrida espacial’, e o conhecimento científico que o Sirius vai trazer para o Brasil é imenso. Os pesquisadores de áreas que usam big science [pesquisas científicas feitas em laboratórios imensos e com equipamento de última tecnologia] são como surfistas de grandes ondas: eles vão para onde há possibilidade de realizar o que buscam. O nosso síncrotron não era competitivo, e agora temos um poder de atração internacional imenso”, analisa.
Assim como outros cientistas que trabalham no imenso campus onde se localiza o LNLS, Rocha aposta que a inauguração do acelerador será o marco de um novo polo científico brasileiro.
“O motor da sociedade moderna é a inovação. Inovação melhora a qualidade de vida das pessoas. Estamos em uma espécie de ‘nova corrida espacial’" Túlio Costa Rizuti, pesquisador
O Projeto Sirius e o valor do investimento em ciência e tecnologia
O LNLS, que hospeda os quase 70 mil metros quadrados (m²) do Projeto Sirius, é localizado em um imenso parque de Mata Atlântica. Entre trilhas de terra, árvores nativas, tucanos e galinhas-d’angola, está hospedado o maior investimento já feito em ciência no Brasil.
Essa é uma característica que deixa a identidade do Sirius bem clara para os visitantes: o impressionante complexo tecnológico é brasileiro e prova que, mesmo em um país em desenvolvimento e sem muitos recursos para pesquisa, o espírito de desbravamento, de investigação científica e de avanço civilizatório dos profissionais tupiniquins se transforma em algo inédito. Temos, afinal, o maior, melhor e mais desenvolvido centro de pesquisa que um cientista poderia desejar.
“Somos levados a pensar que as coisas no Brasil não vão funcionar, que não é possível realizar ciência e que os outros países são muito melhores que o nosso. É a velha síndrome de vira-lata. Mas agora estamos na fronteira, estamos fazendo o melhor que o mundo já viu, mesmo com todas as dificuldades políticas e sociais.
E temos isso em um ambiente horizontal, cheio de inovação e de motivação que só é visto em multinacionais, como Google ou Amazon”, afirma Fernando Bacchim, líder da equipe de proteção radiológica do Sirius. Bacchim acredita que o reconhecimento do Brasil como potência científica não está distante. Questionado sobre o que acha que vem pela frente para o Sirius, respondeu sorrindo. “Acho que teremos um Nobel antes de um Oscar.”