Eles são brasileiros que fazem parte da primeira linha do esporte de alto rendimento e são referências mundiais em suas modalidades. Chegam como favoritos absolutos a Lima, para os Jogos Parapan-Americanos, que começam nesta sexta-feira (23). À Agência Brasil, nove campeões paralímpicos garantiram - antes de embarcar para a competição - que, muito além do resultado, querem também inspirar outras pessoas com alguma deficiência a se apaixonarem pelo movimento e pela rotina de se superar todos os dias.


Assista a entrevista da atleta Evelyn Oliveira no programa Stadium

Na íntegra, três minutos e meio. Na versão compacta da música, cerca de 72 segundos. Seja qual for o tempo que dure, trata-se de uma trilha sonora que eles sempre querem ouvir. É certo que na pista de atletismo, na piscina, em campos e em quadras, o preparo incessante e profissional, o talento, a persistência e o apoio de outras pessoas fizeram cada um deles percorrer o caminho mais desejado: aquele até o pódio.

É de lá que podem escutar a música - o Hino Nacional - que dura poucos segundos diante do infinito que passa por suas memórias. São vitórias com narrativas que, para serem contadas, não caberiam no tempo de pódio. Lá com a medalha no peito, devem se recordar do tempo dos barulhos e dos silêncios.

No Parapan-Americano de Lima a partir do dia 23 de agosto, o Brasil terá a maior representação da história, com 512 integrantes, 337 atletas em 17 modalidades. Esportistas que são nascidos em 24 unidades federativas do país. Dentre todos os competidores, ouvimos nove campeões paralímpicos de 2016. Referências em seus esportes - acostumados, ansiosos e favoritos ao pódio. Diante de alguma limitação, subverteram os olhares de desconfiança e se tornaram atletas profissionais.

“Minha patologia traz muitas limitações. Eu vi na bocha algo que conseguia fazer com as minhas mãos. Tinha uma rotina de casa para escola. Fiquei fascinada por uma rotina diferente. Passei a ter independência financeira e pessoal, principalmente. Eu tinha que ir para outros lugares. Fui conhecendo outros mundos”, disse a campeoníssima Evelyn Oliveira, de 42 anos, da bocha adaptada, favorita na competição em dupla e na individual. Diagnosticada com atrofia muscular espinhal, ela não tem os movimentos dos membros inferiores e tem limitações nos membros superiores.

Na cabeça e no coração, campeões paralímpicos sabem que respondem muito mais do que apenas por eles mesmos. Cada vez que competem, eles garantem que sabem que se tornam exemplos, para que outras pessoas com algum tipo de deficiência saiam de casa e que possam se entender como sujeitos da própria história.

Mesmo já tendo alcançado o topo do esporte – a medalha de ouro em Jogos Paralímpicos - os nove entrevistados pela Agência Brasil garantem que a ansiedade diante de um Parapan é a mesma de uma Paralimpíada. "Grande ansiedade" e "alegria" são expressões que cabem na mesma frase desses campeões. “Sempre dá frio na barriga (risos). É importante manter isso. Claro que a experiência de ter participado de três edições de Parapan ajuda bastante na hora da final”, disse o nadador Daniel Dias à reportagem. Estão todos cheios de metas para bater, de se manter no topo, de estimular os sentidos e o movimento.

0 Integrantes
0 Atletas
0 Modalidades
0 Unidades Federativas


Grandes promessas

O atleta Daniel Dias comemora mais uma medalha / Foto: Comitê Paralímpico Brasileiro

Sobra eficiência, por exemplo, para o multicampeão Daniel Dias, com 31 anos de idade. Nos últimos três Parapans, foram nada menos do que 25 medalhas de ouro (oito no Rio de Janeiro, em 2007, 11 em Guadalajara, no ano de 2011, e outras oito em Toronto, em 2015). Para o nadador, a edição de Lima é estratégica. “O Parapan e o Mundial de Natação, que é logo na sequência, são qualificatórios para os Jogos de Tóquio 2020, portanto muito importantes neste momento”, explicou. Nas Paralimpíadas de 2016, no Rio, Daniel Dias chegou a quatro ouros, três pratas e dois bronzes. “Toda competição tem sua importância, e tento entregar o meu melhor em cada uma independentemente. Acredito que as exigências possam ser diferentes apenas na abrangência da competição. O Parapan é um evento continental.”

Assista o Programa Especial sobre Daniel Dias produzido em 2016

Se na piscina é grande a expectativa para Daniel Dias, também é para um xará nas pistas de atletismo. Apesar de já ter se consagrado com o ouro em 2016 nos 400 metros na classe T20 (para atletas com deficiência intelectual), Daniel Martins, de 23 anos, é um “novato” no Parapan. Em abril deste ano, quebrou o recorde mundial da sua categoria, com o tempo de 46s86. A antiga marca já era dele. No mês seguinte, foi eleito o melhor atleta das Américas. “Minha expectativa é a melhor possível. É meu primeiro Parapan. Vai ser muito importante. Falta essa medalha na minha estante. Estou trabalhando muito para chegar lá e conseguir o resultado. Viso um degrau de cada vez. Chega a mexer com a gente. É bom sentir esse friozinho na barriga”. Para ele, o Parapan é um teste de fogo. Os principais adversários de Martins participam do evento. “O nível de exigência é grande. Eu vou encontrar os adversários mais fortes. O top 5 do Mundial é todo da América.”

Daniel Martins, recordista em atletismo / Foto: Comitê Paralímpico Brasileiro

É uma situação semelhante à de Felipe de Souza Gomes, de 33 anos, campeão paralímpico em 2016 e medalhista em todas as provas que competiu: 100m, 200m, 400m e no revezamento 4x100m T11-T13 (para pessoas com deficiência visual). “O Parapan é muito forte. Meus principais adversários estão nos Estados Unidos ou no Brasil. No caso dos 100 metros, tem o David Brown, que é o recordista. Nos 400 metros, o Daniel Mendes." Com peso de competição decisiva, Felipe sabe que o resultado tem repercussão para o resto do ano. “Fico nervoso até com as competições internas aqui no Brasil. É meu quarto Parapan. É uma preparação para Tóquio, mas também uma oportunidade a mais de conseguir o índice para o Mundial deste ano, que vai ser em Dubai (Emirados Árabes).”

“No arremesso do disco, eu sou o primeiro do mundo. No peso, eu brigo para ficar entre os três.”
Ouça a entrevista com Alessandro Silva

“Parapan não é fácil. Brigamos de igual para igual.”
Ouça a entrevista com Fábio Vasconcelos

“Eu não tinha oportunidade. O futebol de 5 me possibilitou estar nas quatro linhas”
Ouça a entrevista com Raimundo Nonato

“Sou privilegiado porque sou espelho para atletas que estão iniciando. (...) Nada é impossível quando acreditamos nos sonhos.”
Ouça a entrevista com Petrúcio Ferreira

"A gente é espelho para pessoas que não conhecemos.”
Ouça a entrevista com Daniel Martins

"Eu tinha que ir para outros lugares. Fui conhecendo outros mundos”
Ouça a entrevista com Evelyn de Oliveira

No Parapan, Claudiney Batista dos Santos, de 31 anos, ouro no lançamento de disco na Rio 2016 (categoria F56), vai rivalizar com adversários poderosos. “O cubano Leonardo Diaz é o principal adversário e devemos competir no Parapan. Por isso, tem sim frio na barriga e devemos buscar nossas metas.” Ele está neste caminho desde o ano passado, quando bateu o próprio recorde no lançamento, em circuito nacional, chegando a 46,68 metros. “A meta do ano é chegar a 47 metros.”

Como Claudiney, outro brasileiro campeão no lançamento de disco (mas na classe F11, pessoas com deficiências visuais) é o paulista Alessandro Silva, que completa 35 anos este mês. O atleta é o melhor das Américas tanto no levantamento de peso como no arremesso de disco. “No arremesso do disco, eu sou o primeiro do mundo. No peso, eu brigo para ficar entre os três”, afirma o atleta, que perdeu a visão por causa da toxoplasmose.

Nem mesmo a luta contra uma hérnia de disco o freou. E agora, em Lima, tem mais um motivo para mandar longe os discos e qualquer possibilidade de desânimo. Alessandro tem um herdeiro que está para chegar e é possível que ele receba o telefonema quando estiver longe. “Acho que ele vai nascer quando eu estiver em Lima. Quero ganhar a medalha de ouro para ele.”

Outro integrante da delegação que tem um time favorito para guiar é o técnico da seleção brasileira de futebol de 5, Fábio Vasconcelos. “Parapan não é fácil. Argentina é uma das principais seleções. Colômbia está evoluindo. Essas seleções brigam com o Brasil de igual para igual”, analisa o treinador, que comanda a seleção desde 2013. Os jogadores da modalidade são todos profissionais e sabem que a responsabilidade é grande na divulgação do esporte, principalmente à frente de uma seleção com a fama de imbatível. “Conseguimos ganhar o Mundial, Parapan e Paralimpíadas de 2016.”

No time do técnico do Fábio, um dos destaques é um craque também multicampeão pelo Brasil. O pernambucano Raimundo Nonato, de 32 anos, natural da cidade sertaneja de Orocó, vive hoje em Petrolina, onde conheceu a modalidade a convite de um amigo. Tudo deu muito certo. Ele faz parte desse time vencedor das últimas paralimpíadas de Londres e do Rio de Janeiro, e dos últimos mundiais (Tóquio e Madri), além do Parapan de Toronto. Cego de nascença, desde criança foi fascinado por futebol e brincava nos campos de terra da sua cidade. “Eu brincava com a bola convencional. Em Petrolina, conheci a bola adaptada (com guizo)”. Antes, para ficar perto também dos campos de todas as formas, era organizador dos torneios amadores da região. “Eu organizava as competições para o pessoal jogar. E eu não tinha oportunidade. O futebol de 5 me possibilitou estar nas quatro linhas”, celebrou o jogador.

Da Paraíba vem o velocista Petrúcio Ferreira, de 23 anos de idade, que vai competir nos 400 metros. Ele é o atual recordista nos 200 metros (classe T47, para amputados de braço) com a impressionante marca de 21s10. Em João Pessoa, na universidade federal, ele treina para correr os 400 metros. “Tem uma pista qualificada para os meus treinos. Fui descoberto para o atletismo quando eu tinha 16 anos.” Ele sabe que é um ídolo da moçada. “Sou privilegiado porque sou espelho para atletas que estão iniciando. Tive dificuldades no início, mas consigo deixar a imagem que nada é impossível quando acreditamos nos sonhos”, disse.

Ser modelo mexe com eles. Daniel Martins começou a correr muito jovem (em 2004 com oito anos de idade) na Casa do Pequeno Cidadão. “A gente começou a ir uma vez por semana para comer. Davam um lanche (risos) e fui pegando amor.” Ele ainda treina na rodovia ao lado da Associação Mariliense de Esportes Inclusivos (Amei), em Marília (SP), com o técnico Luiz Carlos Albieri, o “Esquilo”, uma lenda no esporte na cidade. Entre as graças que faz durante o treinamento, Martins compara sua velocidade com os carros que passam pela rodovia. “É muito importante inspirar novos atletas. Recebi uma vez uma mensagem de um menino dizendo que queria ser um Daniel Martins. É bastante importante. A gente acaba virando um espelho para eles. A gente é espelho para pessoas que não conhecemos.”

O xará na piscina concorda que a responsabilidade deles é grande. Daniel Dias fundou, em 2014, um instituto que leva o seu nome e funciona em Bragança Paulista (SP). O intuito é estimular a prática esportiva, formar novos campeões e também fomentar práticas de cidadania. “Costumo dizer em minhas palestras que nosso país carece de bons exemplos. É uma grande honra quando alguém se diz inspirado na minha pessoa e história. Todos temos problemas e dificuldades, e nada tem a ver com a deficiência, mas a grande diferença é como vamos lidar com isso. Eu escolho sorrir.”

O maior campeão paralímpico brasileiro se inspirou em outro grande atleta. “Eu comecei tarde no esporte. Vi o Clodoaldo Silva ganhando medalhas nas Paralimpíadas de Atenas, em 2004, e só ali descobri o esporte paralímpico. Procurei uma entidade para começar e aprendi a nadar com 16 anos. No ano seguinte, estava disputando um Mundial de Natação e a carreira deslanchou.”

“Tem que ter uma imagem boa. É inspirador saber que muitas pessoas te seguem pelas dificuldades que foram superadas”, afirma Alessandro Silva, atleta do lançamento de disco. Eles garantem que sentem toda esta admiração. “Toda vez que eu pisava na pista, as crianças gritavam pra caramba. Aquilo foi importante para mim e é importante para o Brasil. Também é bom para encorajar aquelas mães que têm medo de colocar os filhos para treinar. Isso é importante para que as famílias saibam da limitação e do potencial. As pessoas vão perdendo os seus medos”, explica Felipe Gomes. Com Evelyn Oliveira também foi assim. “Mais importante do que ganhar títulos, é importante inspirar pessoas.”

E não são só os paratletas do futuro que podem despertar a partir de Lima. A educadora física Raquel Gonzaga tem 37 anos e trabalha com a bocha desde 2001. Ela é uma das calheiras da delegação - pessoas que seguram as calhas para que a bola desça à pista. Já foi técnica da modalidade por dez anos, mas desde o ano passado, atua ao lado de outro favorito no Parapan: Antônio Leme. “Como eu sou calheira, a minha inspiração é mais para as pessoas que queiram trabalhar com deficientes. Esse é meu papel: mostrar para as pessoas que não precisa ser parente para ser calheiro. A afinidade é adquirida com o tempo e com o respeito.”

Eles contam os segundos para a primeira prova como contaram em anos o tempo para competir. Ao longo tempo, estimularam-se com a busca por resultados, nem todos palpáveis, nem todos que brilham. O tempo é deles sempre, mesmo quando nem todas as histórias se contam. Lá vêm os campeões que batem marcas do tempo e de espaço sem esquecer as marcas no corpo e as que ficaram na alma. Aquelas do corpo os deixaram mais vívidos e dispostos a inspirar. Quando começar a competição, podem ouvir: “em suas marcas… valendo!” Ah, as marcas...