A novidade vinha acompanhada do barulho sobre os trilhos. E vinha com tudo. No Brasil dos anos 1920 com 30 milhões de pessoas, o transporte ferroviário ainda era o principal. Pelas 15 ferrovias, a maioria no Sul e Sudeste, escoavam as produções de um país que experimentava períodos de desenvolvimento, e ainda agroexportador dependente da produção do café. Para se ter uma ideia disso, nos 50 anos anteriores àquele momento, o país manteve uma média de 6 mil km de trilhos por ano, em um período que ficou conhecido como “Era das ferrovias”. As estradas eram raras, e de terra. Como era incomum também ouvir sobre direitos profissionais. Mas o “barulho” que viria desse meio de transporte mudaria os caminhos dos trabalhadores brasileiros.
Isso porque era um tempo em que o trem integrava áreas rurais às urbanas, já que não existiam ônibus ou caminhões, e o carro era para privilegiados. O trem ligava o interior ao porto, ao mar. A máquina carregava a esperança do país majoritariamente do campo, traduzido em versos modernistas como de Oswald de Andrade, em 1924, “Lá fora o luar continua. E o trem divide o Brasil como um meridiano”, ou na composição para orquestra O Trenzinho do Caipira, de Heitor Villa-Lobos, escrita em 1930. Os instrumentos da consagrada composição imitam os sons da outra composição, que eram ouvidos das estações. Além do som das máquinas, da poesia, das músicas, do barulho das estações, o apito da chegada, o trabalho duro nas estradas de ferro traria uma sonora transformação histórica.
A máquina movida à lenha exigia, por exemplo, a atenção e tensão total dos foguistas, os trabalhadores que jogavam a madeira a altas temperaturas para manter o veículo em movimento. Os ferroviários, com a visibilidade e a força de categoria que mantinha as locomotivas nos trilhos brasileiros, seriam os primeiros a terem o benefício que iria se tornar uma boa-nova nacional, a aposentadoria.
“O projeto que tenho a honra de apresentar à Câmara dos Srs. Deputados representa aspirações de uma grande classe de servidores do País - os empregados de estrada de ferro. Na vida moderna, não se compreende progresso sem estas, que constituem o sistema circulatório das nações, na paz como na guerra…”. Era assim que começava o discurso, em janeiro de 1923, do deputado Eloy Chaves. “.... Nas aposentadorias, tive muito em vista não só o tempo de serviço, como a idade do aposentado”. Trabalhadores na lida pesada tinham que ficar no serviço mesmo idosos. Os argumentos e o contexto histórico encaminharam a aprovação pelos colegas e a lei foi sancionada pelo presidente Arthur Bernardes (confira aqui, em 48 artigos). “Art. 1º Fica creada em cada uma das emprezas de estradas de ferro existentes no paiz uma caixa de aposentadoria e pensões para os respectivos empregados”.
A lei é considerada a principal precursora da Previdência Social no Brasil, a primeira de caixas de aposentadorias e pensões. Segundo os historiadores, é resultado das paralisações grevistas do final da década anterior. O escritor Sebastião Nery, pesquisador do assunto e autor do livro “A história da previdência no mundo”, ainda não publicado, revela uma história curiosa sobre os bastidores dessa aprovação.
Ele registra que, em 1921, o deputado Eloy Chaves, em uma viagem para Monte Serrat, no caminho de Santos, para inspecionar uma usina de força, presenciou uma conversa que o surpreendeu. Na viagem de trem, na antiga Estrada de Ferro Sorocabana, o parlamentar teria ouvido de dois ferroviários lamentos sobre as condições de trabalho. Nery explica que recebeu relatos e documentos do ex-ministro e ex-deputado Aluizio Alves, que publicou uma obra sobre a previdência no Brasil no ano de 1940. Segundo Nery pesquisou, os trabalhadores da ferrovia, principalmente aqueles que exerciam atividades mais desgastantes, como foguistas e maquinistas, não podiam parar de trabalhar mesmo quando idosos. O parlamentar, então, teria se sensibilizado com o lamento dos funcionários para formular o projeto de lei que mudaria a história dois anos depois. “A Lei Eloy Chaves é a mãe da Previdência Social no Brasil. Todas as lutas e vitórias anteriores, mesmo pequenas, foram avós, algumas bisavós, como o Decreto do Príncipe Pedro de Alcântara em 1º de outubro de 1821”.
O decreto de 1º de outubro de 1821 (há 198 anos, portanto) seria a primeira normativa que registra assunto relacionado à Previdência Social na história brasileira. A regra determinava que um benefício fosse concedido para professores com 30 anos de trabalho.
“As Cortes Geraes, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, reconhecendo que hum dos meios de promover a Instituição pública é contemplar as pessoas que della são encarregadas. Decretão o seguinte: Art. 1º Os professores e Mestres regios, de hum e outro sexo, de Primeiras Letras Grammatica Latina e Grega, Rhetorica e Filosofia, que, por espaço de trinta annos continuos, ou interpolados, houverem regido louvavelmente e, sem nota, as suas respectivas cadeiras, serão jubilados com o vencimento de todo o ordenado”. Mas a medida não teve efeito prático.
Para a advogada Polyana Laís Caggiano, especialista em direito constitucional e do trabalho, antes de 1923, as ações previdenciárias relacionam-se mais com aspectos de privilégio para pequenas parcelas da sociedade. “Nesse sentido, beneficiavam-se setores importantes para o Império. Eu entendo como primeira e principal conquista legislativa para a previdência a Lei Eloy Chaves, com a criação das Caixas de Aposentadoria e Pensão. A legislação abriu precedente para conquista da aposentadoria por novos setores”, afirma.
O historiador Frederico Tomé contextualiza que a aposentadoria no Brasil surgiu a partir de ações que são consequências dos processos ou “surtos” de industrialização no Brasil. O pesquisador cita essa mudança de cenário particularmente entre o final do século 19, principalmente após a Guerra do Paraguai (1864-1870), até as décadas de 1920/1930. “O país diversificou sua pauta de exportação, que era predominantemente agropastoril e passa a adotar prática industrial. O surto industrial gera consequências, com a chegada de imigrantes, e diferentes movimentações no país, como a formação de sindicatos e associações de trabalhadores. Esse apoio mútuo passa a gerar consequências”.
As consequências são as movimentações dos trabalhadores e o reconhecimento de que o Estado que era necessário melhorar as condições dos operários. As manifestações populares no final dos anos 1910 foram também marcos históricos que aceleraram as transformações. “Isso acontece principalmente na década de 1920 e depois na década de 1930, com o início do governo Getúlio Vargas. Esse movimento provoca consequências diretas, inicialmente para ferroviários, e depois para operários de várias categorias. A previdência começa por relações mutuárias e acaba sendo encampada pelo Estado”.
A constitucionalista Polyana Caggiano explica que, a partir da Lei Eloy Chaves, até 1934 foram estendidos os direitos para as categorias dos portuários, dos marítimos e dos trabalhadores telegráficos e radiotelegráficos. Em 1930, quando o Brasil tinha uma população de 37 milhões de pessoas, foi criado o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, a fim de orientar e supervisionar as ações pela Previdência. Na Era Vargas, foi abolida a caixa de aposentadoria e pensão e foi instituído o Instituto de Aposentadoria e Pensão. Em nível nacional, uma novidade da constituição de 1937 foi o custeio tríplice para a previdência, repartindo os custos entre empregado, empregador e Estado.
Outro avanço, segundo os registros e também especialistas, é a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), do ano de 1943, aprovada em 1º de maio daquele ano. Segundo Frederico Tomé, os grupos minoritários em direitos, como as mulheres, foram alcançados a duras penas. Em obra escrita por Jorceli de Souza, em 2002, sobre a história da previdência no Brasil, o autor explica que no final da década de 30, discutia-se a regulamentação do trabalho da mulher.
Entre os pareceres que o governo recebeu, chamam atenção argumentos como “as mulheres adultas são, em sua maioria, casadas e sob autoridade do marido”; “é um ser fraco...é necessário protegê-la contra ela mesma” e “há a considerar a ‘conservação social’ e o interesse geral do Estado”. O então presidente do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Estivadores e Transportes de Cargas (Iapetec), Helvecio Xavier Lopes, discordou, em publicação para a Revista do Serviço Público, das ‘alegações’ e ratificou a importância de as mulheres estarem seguradas, já que “a mulher tem plena consciência de seus atos e, tanto quanto os homens, é livremente ou ao menos com perfeito conhecimento de causa que celebra contrato de trabalho” e, assim, deveria ser igual em deveres e direitos. Se em 1943 a CLT trazia novidades como a que está no Artigo 5º – “A todo trabalho de igual valor corresponderá salário igual, sem distinção de sexo” –, a Constituição de 1946 solidifica esses avanços, diz Tomé. Ele acrescenta que, após a 2ª Guerra Mundial (1945 a 1948), principalmente os países europeus passam a prezar pelo estado de bem-estar social, o que é consolidado na Constituição de 1988.
Outro momento histórico para os brasileiros aconteceu em 1963, com a criação do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural. Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), “é inegável o papel social que a previdência rural tem desempenhado na elevação da renda no campo e, neste sentido, colaborado para a erradicação da pobreza”. Isso em um período em que aumenta a taxa de urbanização, mas a população no campo ainda é maior. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), 38,9 milhões de brasileiros estavam nessa condição enquanto 32 milhões já estavam nas cidades.
Estação de Caieiras
Acervo RFFSA.
Carteira de trabalho de 1934
Expediente
Reportagem: Luiz Cláudio Ferreira
Editores: Alessandra Esteves e Líria Jade
Imagens no Café sem Troco: Jorge Monforte
Design e implementação: Cid Vieira
Data de publicação: 13/11/2019